Manuscritos do Silêncio

"O silêncio é capaz de expor um lado da humanidade que nem milhares de palavras seriam capazes de descrever." Sisá Fragoso - Manuscritos do Silêncio

sábado, 2 de julho de 2011

Retorno a Galagah

Todos estavam felizes naquela noite. Comemoravam com música e dança.  Toda a trupe estava feliz e não negavam isso. Gawyn tocava sua flauta com afinco, Sephiros mantinha um sorriso no rosto, observando a festa, assim como Iallanara fazia. Galatea acompanhava algumas mulheres da trupe no bater de palmas, enquanto as crianças rodopiavam e dançavam.
A festa duraria a noite toda, e começariam a viagem para Galagah naquela manhã. Este era o planejado. Galatea e os outros seguiriam ao lado do Daramascos e companhia.
Sobre uma pequena mesa, alguns alimentos estavam dispostos, entre eles, algumas maças. Todos se distraiam e por conseqüência assustaram-se quando Iallanara se levantou tensa, fitando os galhos altos das árvores.
- Quem está aí? – Gritou rumo ao nada.
Todos se calaram e olharam para a bruxa, confusos.
- Iallanara, o que foi? – Galatea deu alguns passos mais para perto da companheira que nem ao menos mudou o olhar de direção.
- Não seja covarde e se mostre! – Mantinha a voz elevada.
Sephiros trocou um olhar rápido com o amigo elfo. Gawyn olhou em volta, buscando por algo ou alguém, mas não viu nada além da trupe de Dalmut.
- Iallanara! – Galatea chamou a atenção. – Diga-nos o que está acontecendo!
A bruxa vermelha apontou para uma árvore próxima,
- Há alguém ali. Eu o vi. – Olhou para Galatea enquanto falava, antes de voltar-se para a árvore e novamente elevar a voz. – Mostre-se! Ou sofra as conseqüências.
- Coitadinha. Está vendo coisas. – Gawyn sussurrou.
Mas todos se assustaram ao ver os restos de uma maça mordida cair ao solo, vindo do alto da árvore, e um riso baixo ecoou. Galatea empunhou a espada. Gawyn e Sephiros também se colocaram em posições de defesa. Os olhos de todos se fixaram na árvore.
- Não parem o festejo. Eu estava me divertindo. – A voz feminina sussurrada veio do meio das folhas. Um vulto se moveu lentamente até saltar ao chão, a vista de todos.
Uma mulher que não teria mais que um metro e setenta, e um porte físico atlético. Tinha os cabelos longos, lisos e de cor castanha. Os olhos tinham um tom castanho semelhante aos cabelos. Trajava um vestido negro que lhe caia até alguns centímetros abaixo dos joelhos, encontrando o cano de uma bota igualmente negra. Em seu tronco um espartilho de tons rubros a tornava ainda mais magra, e acentuava o decote de seu vestido. Um longo bastão de aço negro repousava preso em uma correia em suas costas, e trazia na mão esquerda um manto negro.
- Uma humana? – Sephiros estava confuso com a mulher.
Diante da mulher aparentemente inofensiva, a maioria relaxou. Todos temiam que fosse algum seguidor de Enelock. Mas o receio voltou ao ouvir o riso sinistro da mulher.
- Ou não. – Ela sussurrou com sua voz sinistra ao mesmo tempo em que fechava lentamente os olhos, e os mantinha fechados por um único segundo, então os abrindo uma outra vez. O tom castanho da íris de seus olhos agora fora substituído por um vermelho cor de sangue.
Iallanara ficara mais pálida que o habitual. Gawyn dera dois passos para trás. Sephiros tentou falar, mas os sons não saíram. Apenas Galatea continuava no mesmo lugar, olhando confusa para seus companheiros temerosos, sem entender o medo que se estampava no rosto de pessoas tão valentes.
- Imagino que a Princesa não saiba o que sou. – Novamente o riso sussurrado e sinistro.
- Não me importa o que seja. Se quiser nos atacar, eu revidarei. – Ajeitou a espada que ficou apontada para a mulher de olhos rubros.
- Galatea, não faça nada. – Sephiros advertiu. – Esta mulher é...
A Guardiã da Vida olhava para Sephiros, esperando que concluísse a frase, mas foi a voz de Iallanara que sentenciou a situação em que estavam metidos.
- ...Um demônio.
Galatea sentiu um frio tomar seu corpo e baixou a espada em choque.
- Eu... – Iallanara pigarreou, tentando manter o tom da voz. – Eu achava que sua raça houvesse se extinguido.
- Muitos acham isso. – A voz vinha sussurrada. – De fato não resta muitos de nós, mas estamos por aí. – Correu o olhar por cada um ali, e por fim parou em Galatea, que mantinha a espada preparada. – Ora, não sejam ridículos. Se eu tivesse a intenção de atacar, vocês já estariam mortos.
- Com isso eu concordo. – Gawyn relaxou o corpo, cruzando os braços e analisando a estranha mulher.
- Se não veio ao ataque, o que quer? – Iallanara ainda desconfiava.
- Eu estava de passagem, e ouvi a musica. Como eu disse, estava me divertindo.
- Se a mulher demônio aprecia nossa comemoração, então ela pode participar dela. – Daramascos declarou em sua voz potente.
- Qual o seu nome? – Galatea guardava a espada sem tirar o olhar da mulher.
- Meu nome é impronunciável para vocês. Porém, fique a vontade em chamar-me de Alice. – O riso sussurrado ecoou novamente.
Gawyn aproximou-se do amigo elfo, lhe perguntando em voz baixa, ou ao menos pensou ser baixa.
- Por que ela fica falando aos sussurros?
Sephiros parecia pensar para responder. A raça dos demônios era algo raro de ser visto hoje em dia. Poucos ainda tinham qualquer conhecimento mais especifico sobre seus hábitos. Era de se esperar que apenas alguém que vivia no tempo dos demônios, poderia responder a tal pergunta.
- Para evitar uma habilidade que nasce com os demônios. Se ela falar mais alto, sua voz chamará os mortos para este local, mesmo que ela não o deseje. – Ethan se mostrava presente entre o grupo de pessoas.
- Sim. Não acho que vocês gostariam deste tipo de convidados em seu festejo. – Alice se moveu em passos lentos, e não deixou de sorrir com sadismo ao notar que todos congelaram seus movimentos, atentos ao que ela fazia. Andou até a pequena mesa de alimentos, e pegou uma maça, a levando à boca e mordendo um pedaço. Estava de costas para a maioria daquelas pessoas, engoliu o pedaço da maça antes de falar. – Se ainda tem dúvidas de minhas intenções, use seus dons para verificar, Princesa de Galagah.
Galatea não escondeu a surpresa.
- Me conhece? – Indagou.
- Na verdade não. Conheço o símbolo de teu deus, e estive a ouvir lhe chamarem de princesa. Apenas associei as coisas. Vejo que acertei. – Se distraia mais com a maça do que com as pessoas. – Mas sinta-se à vontade para usar teu poder.
- Disse que se chama Alice. Sabe usar a magia? – Ethan interferiu na conversa.
- Hum? – Alice se mostrava realmente confusa com a mudança de assunto. – Conheço todos os campos da magia, porém uso apenas as magias relacionadas ao fogo. É uma característica de minha família.
- Então eu estou certo. Cresceu muito, jovem dama. – Ethan mostrou um sincero sorriso.
- Nos conhecemos? – Alice questionou ainda se deliciando com a maça.
- Sim. Quando tinha esta altura. – O Campeão Sagrado levou a mão até a altura da cintura, indicando uma referência de altura.
- Impossível. Deve estar enganado. – Concluiu.
- Por que diz isso? – Sephiros estava curioso com a conversa entre a mulher demônio e o Campeão Sagrado.
- O tempo dos demônios corre em um ritmo diferente do que para os humanos. A idade que eu teria para ter tal altura foi à cerca de... – Pensou, fazendo cálculos mentais. – Quase duas vidas humanas.
O som de um assovio se fez ouvir, e Gawyn falou.
- Então você é bem velha.
Poucos segundos depois, metade de uma maça o atingiu no rosto.
- Voltando ao assunto... É impossível que tenha me conhecido com tal idade. – Remexia a mesa de comidas, se apropriando de um cacho de uvas verdes.
- Talvez eu esteja enganado de fato. A jovem que conheci era uma nobre dentro da raça dos demônios. Eu havia conhecido o pai dela, e conseqüentemente sua esposa, que tinha três filhos. Dois rapazes fortes, e uma jovem. Mas eu soube que meses depois aconteceu uma...
- Cale-se! – Alice falou no tom mais alto que podia sem invocar nada fora do mundo natural.
Ethan parou de falar, sem se ofender com a interrupção da jovem. Aquela era a mesma Alice que conhecera tantos anos antes, e sabia o passado negro e brutal que sua família tinha. Sabia também que seria de fato uma imprudência provocá-la em tal assunto.
- Onde a Jovem e, sem dúvida, delicada Dama está indo? – Gawyn a encarava enquanto passava a mão sobre o circulo vermelho que ficou em seu rosto após ser atingido pela maça.
- E quanto à história de que sua habilidade de segurar coisas não funcionar com elfos...Qual sua desculpa desta vez? Também não funciona com demônios? – Iallanara passava a não pensar mais na presença da mulher demônio, e provocava Gawyn.
- As mulheres de hoje em dia estão cada vez mais insolentes. – Agora o olhar fixo do elfo espadachim recaia sobre a bruxa vermelha.
- Agnara. É para onde vou. – Alice respondeu como se nada de importante tivesse em seus caminhos.
Daramascos falava alto, para que seus homens continuassem com a comemoração. A música recomeçou, e as conversas altas fizeram necessário que os cinco em missão Sagrada se juntassem mais próximos de Alice para ouvir sua voz baixa.
- Não tem qualquer obrigação de nos revelar sua missão, mas estou curioso em saber o que fará em Agnara. – Sephiros sentava-se sobre uma grande pedra, cruzando braços e pernas.
- Recebi informações que alguém que procuro pode estar por aquela região. Pretendo localizar esta pessoa. – Alice acabava o cacho de uvas, e agora parecia entediada.
- Quem está procurando? – Gawyn perguntou.
- Não é de sua conta. – Alice fora simples. – E vocês? Elfos, magos, bruxas, Campeões Sagrados. – Correu os olhos por cada um enquanto falava. – É um grupo muito estranho de se encontrar, ainda mais em companhia de uma princesa que me parece muito bem armada. Estão brincando de guerra?
- Não seja idiota! – Iallanara levara a mão ao punhal, ameaçando sacá-lo, mas se deteve ao notar uma ponta de ferro a quase lhe tocar a garganta.
A expressão de todos era de espanto, pois não haviam visto Alice se mover, mas ela estava agora à frente de Iallanara, com o bastão de ferro negro em mãos, apontando sua ponta para a bruxa vermelha.
- Não seja idiota você. – A mulher demônio logo afastou o bastão de Iallanara, o colocando novamente às costas. – Eu já disse que não vim atacá-los, então não se atrevam a atacar-me.
- Peço desculpas em nome de minha companheira. – Galatea se pronunciava. – E no momento estávamos regressando para Galagah. Estou em missão sagrada, mas prefiro não revelar mais que isto.
- Você é muito sincera, Princesa. Embora sua educação esteja falha. – Encostava-se a uma árvore próxima.
- Que disse? – A Campeã Sagrada estava confusa.
- Vocês perguntaram meu nome, perguntaram o motivo de eu estar aqui, o motivo de eu ir para onde vou, e falaram em meu passado. Mas eu ainda não ouvi o nome de vocês. É uma grande falta de educação vindo de uma princesa.
- Lamento, mas sua presença nos deixou assustados. Sou Galatea Goldshine, Campeã Sagrada de Radrak, filha de Airon Goldshine. E estes são Shepiros e Gawyn Silverheart, dois amigos elfos. Está é Iallanara Nindra. E Ethan Ghoslayer, que parece conhecer-lhe.
Alice, pela quarta vez corria os olhos pelos cinco que estavam dispostos ao seu redor. Fechou os olhos e emitiu um riso curto, que mais se assemelhava à um suspiro. Desencostou-se da árvore e apoiou uma das mãos na própria cintura.
- Muito bem. Todos devidamente apresentados. – Abriu os olhos de íris vermelhas e fitou o céu noturno por entre as árvores. – A noite já vai longa. Agradeço tão agradável conversa, e certamente sou grata pelas frutas, mas devo seguir meu caminho.
- Espere! – Galatea pediu, ao ver a mulher demônio se virar. Visto que Alice parara o andar, falava agora com o Campeão Sagrado. – Ethan, você a conhece. Ela nos fará mal?
- Não creio nisso. – Ethan prontamente respondia. – Se tivesse tal intenção, já o teria feito. A morte é de sua natureza.
- Então peço que fique, Alice. Pode nos acompanhar a maior parte do caminho. Parece-me ser uma pessoa muito poderosa, mas acho perigoso para você vagar por aí durante a madrugada. – Galatea parecia ter uma sincera preocupação com a moça.
- Acho que o maior perigo é ela. – Gawyn falou mais para si do que para os outros.
- Acho que devia calar a boca. – Alice parecia querer cortá-lo ao meio com o olhar gélido. Voltou um olhar indiferente para a Princesa. – Minha viagem tem sido solitária. Aceitarei sua gentileza, até que nossos caminhos sejam separados.
Por mais algumas poucas horas a cantoria e festa continuaram, agora com uma pessoa a mais. Enfim, aos poucos, todos foram caindo no sono, a não ser por dois membros da companhia de Dalmut que serviam de vigilantes para os perigos da noite.
Galatea acordou com o pressentimento de que algo próximo se movia. Estava certa. Sentou-se e ficou olhando enquanto Alice, já em pé, vestia o manto negro que a torna quase invisível na noite.
- Onde vai? – Falou baixo para não despertar mais ninguém.
- Volte a dormir, Princesa.
- Achei que fosse seguir caminho conosco.
- Seu amigo Ethan tem razão. A morte é de minha natureza. Tenho de chegar a Agnara e localizar um de meus irmãos. – Alice olhava para o nada, na direção onde ficava Agnara. Estava de costas para Galatea, que não via nada além do vulto negro.
- Pretende se reunir com sua família? – Galatea tinha um leve sorriso no rosto.
O riso baixo, agora algo conhecido, ecoou por um tempo breve.
- Apenas por ser “família” não significa que sejam pessoas a quem queremos bem. – Alice deixava claras suas intenções macabras nessa busca pelo irmão.
Galatea estava sem palavras, e permaneceu em silêncio.
- Mas eu gostei de você, e de teus amigos. Se os deuses permitirem... – Calou-se por um momento, puxando o capuz do manto negro para cima da cabeça. Virou o rosto para Galatea, e continuou. – Espero ter o prazer de revê-los em algum momento.
- Alice... – Galatea agora estava em choque. Os olhos de Alice haviam retomado a cor castanha, e um sorriso estava em seus lábios. Galatea, por um momento, pareceu poder ler a alma de Alice, e nela encontrou apenas ressentimento, decepção e dor, encobertos por uma impenetrável camada de frieza. Lembrou-se do que Ethan falava sobre o passado da jovem, ao qual Alice interrompeu. Estava decidida, perguntaria a Ethan o que havia ocorrido com Alice para tais sentimentos estarem tão amarrados à moça.
Galatea queria pedir que Alice ficasse, que fosse com eles para Galagah. Mas algo dentro de si dizia que era melhor deixar a mulher demônio seguir seus próprios caminhos.
- Boa sorte nesta tua tal missão sagrada, Princesa de Galagah. – Novamente dava as costas à Campeã Sagrada e iniciava um caminhar silencioso, floresta à dentro.
- Galatea. – A Princesa falou mais alto. – Me chame de Galatea.
Alice levantou o braço, deixando os dedos apontados para o céu escuro, sem parar de andar, nem se voltar para Galatea.
- Que as estrelas a acompanhem, Galatea.
A Campeã Sagrada permaneceu sentada, olhando para o caminho que Alice havia tomado, e já não via mais o vulto da mulher demônio. Olhou para o céu e sorriu, deitando-se e partindo para o sono, certa de que em algum momento de sua jornada, Radrak colocaria Alice novamente em seu caminho.

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Nota da Autora: Este conto é uma homenagem à um grande amigo. Todos os personagens que aparecem neste conto, são de autoria de Leandro Radrak Reis e fazem parte do Legado Goldshine. Apenas Alice pertence a mim e é a protagonista do romance Rubro. Obrigada por ler! ^-^

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