Manuscritos do Silêncio

"O silêncio é capaz de expor um lado da humanidade que nem milhares de palavras seriam capazes de descrever." Sisá Fragoso - Manuscritos do Silêncio

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Arrependimentos



Argus, capital do Reino à oeste das Terras Médias. Uma cidade de grande porte que embora não movimentasse a economia da região, impunha respeito por sua força militar de alto nível. Quanto a mim? Já não passo de uma velha sacerdotisa do antigo templo da capital que não fez muito mais que observar e aconselhar os que passavam por meu caminho.
Poucos me chamavam de bisbilhoteira, por me envolver em assuntos dos quais não fazia parte, mas era de minha natureza ajudar os que choravam e sofriam. Apenas uma vez decidi ficar de fora do problema, e até o fim de meus dias – que não está muito longe – eu irei me arrepender de não ter feito nada.
Feron Kashthir tinha pouco mais de 20 primaveras na época, mas já ocupava o posto mais alto entre os cavaleiros a serviço do Rei. Tinha o nome de um grande rei do Egito e seu sobrenome vinha de sangue élfico, significando “Destinado à Proteção”. Feron tinha família em outra região, mas vivia sozinho em Argus desde seus 13 anos. Não chegou ao posto por indicações ou mimos, como muitos pareciam subir, mas sim por seus esforços. Sem dúvida suas habilidades eram as melhores e sua espada a mais mortal.
O cavaleiro não possuía nada de extraordinário em sua beleza. Tinha o cabelo escuro, um pouco curto. Seus olhos tinham a cor das avelãs. Estatura média para os homens da época e porte físico igualmente dentro dos padrões. Ainda sim, um número considerável de damas desviava seus olhos para Feron. Damas das mais bonitas e ricas do reino. Imagino que se atraiam mais por sua armadura reluzente e sua patente que por seu espírito de justiça, por seu coração afetuoso, por seus ideais sonhadores.
O jovem talvez pensasse como eu, afinal, mesmo com tão belas jovens ao seu lado, podendo escolher inclusive a Princesa de Argus, o cavaleiro limitava suas carícias para Sirena. A moça perdeu a família vários anos antes e hoje vivia de favor com uma família de comerciantes locais que a hospedavam em troca do trabalho.
Sirena era o mais comum que podia se imaginar. Possuía cabelos escuros pouco longos. Nada comparado aos longos e sedosos cabelos claros das donzelas. Tinha olhos também escuros, nada daquelas cores brilhantes como um lago. Também não possuía riquezas, ou conhecia modos elegantes de se portar. Na verdade, sentia-se realmente uma estranha na vida de Feron. As moças que o cortejavam falavam sobre coisas do interesse do jovem, assuntos que Sirena não sabia tocar em frente, além claro da clara diferença física entre ela e mulheres como a Princesa. Muitas vezes, incontáveis, olhava Feron sendo cortejado e se perguntava Por que eu?.
Orgulhava-se apenas de ser um tipo de “porto seguro” para os medos mais secretos do coração do cavaleiro. Quantas vezes ela já o havia visto rir com as damas e brincar com os colegas para logo se aproximar e mostrar toda a dor e tristeza de sua verdadeira face. Mas nem tudo podia seguir tão bem.
Feron treinava com a guarda do castelo cada vez mais. Regressava tarde, quando Sirena já havia adormecido, e saia cedo, antes da moça acordar. Em suas folgas, cada vez mais raras, freqüentava a taberna com outros cavaleiros. Ele não fazia nada de errado. Não bebia demais, não se envolvia em brigas, não trocava carícias com outras mulheres. Por isto Sirena jamais o vigiava ou seguia, como algumas amigas a diziam para fazer. Não, Sirena confiava em Feron, e assim seria para sempre. Mas o abandono a magoava e a solidão a estava destruindo dia após dia.
No começo ela cruzava com os conhecidos e mostrava um belo sorriso, se divertia, trabalhava com energia e somente quando estava só se entregava à sua dor particular. Mas quanto mais o tempo passava, mais Sirena não tinha forças para sustentar sua máscara. Seus amigos a cumprimentavam e a moça se limitava a um breve aceno de cabeça, e a tristeza agora fazia parte de suas feições. Então tudo ruiu.
- Estou em casa. – Feron abriu a porta enquanto o sol ainda se punha.
- Feron! – Sirena estava feliz pelo regresso antecipado de seu amor e logo o abraçou com força. – Me alegra sua chegada tantas horas antes.
O cavaleiro sorriu levemente e a beijou por alguns breves segundos, antes de soltar-se do abraço da moça e começar a desmontar sua armadura.
- Voltei antes porque preciso me preparar, descansar. – Metade das peças já estava no chão.
- Preparar-se? – A moça parou de cortar alguns legumes e o olhou com receio na voz.
- Sim. O Rei quer mandar um grupo de cavaleiros para Dauper fazer algumas análises. Nenhuma batalha ou algo do tipo, é apenas reconhecimento.
- Dauper?! – Sirena soltou a faca sobre a mesa e sua expressão se contorceu em infelicidade. – Fica a quatro meses de caminhada de Argus. Só para ir e vir levarão quase um ano. Não acredito que o Rei colocou seu melhor cavaleiro em uma missão sem propósito e tão longa.
- Ele não me colocou. – Feron já estava sem a armadura, escondendo as mãos nos bolsos da calça de tecido leve. – Fui eu que me ofereci.
- O que? – Um sussurro.
- Um grupo de novatos é que irá, Sirena. E se algo acontecer a eles no caminho? Sou o comandante das tropas. Seria horrível para mim se isso acontecesse.
- E se algo acontecer a mim em sua ausência? Feron, como pode decidir isto sozinho? Ficará um ano a muitas léguas daqui e nem ao menos se preocupou em perguntar o que eu achava disto. – Ela agora gritava. A dor tomando conta. – Como pode ser tão cruel assim, Feron?
- Não me peça para escolher entre meu dever e minha vida pessoal. – O cavaleiro mantinha a voz baixa, mas era claro a raiva em suas palavras. – Nada acontecerá com você aqui. Está segura. Se me pedir para ficar só estará limitando minha vida.
- Não me dê as costas! – A moça gritou quando Feron deu meia volta e se preparava para ir ao quarto.
Ele parou, ainda de costas para ela, se limitando apenas a olhá-la por sobre o ombro.
- Não me sufoque, Sirena. – Feron seguiu pelo corredor e o único som ouvido foi a porta sendo violentamente batida.
A moça permaneceu em pé por mais um minuto, antes de desabar sobre a cadeira escondendo o rosto entre as mãos e tentando abafar os soluços de seu choro. Por toda a noite Sirena não dormiu e quando o amanhecer chegou, cruzou os olhos com o cavaleiro que saia do quarto com suas coisas em mãos.
- Te peço mais uma vez que não vá. – Mantinha a voz baixa e rouca pelo choro. Feron ignorou. Pegou mais algumas coisas, vestiu a armadura e rumou para porta. - Não vai nem ao menos se despedir?
- Volto em breve. – Foi tudo o que o cavaleiro disse antes de seguir andando para o castelo, de onde todos partiriam em poucas horas.
Sirena ficou para trás. Por vários dias não se via nada além de lágrimas nos olhos da moça. Mal saia de casa. Levou muitos dias para que ela voltasse à sua rotina de trabalho e tarefas normais.
Feron fez uma viagem tranqüila com os novos cavaleiros. A permanência em Dauper foi de poucas semanas e logo se colocaram a caminho de volta. Exatos onze meses após sua partida, o cavaleiro cruza os limites de Argus com o resto de seus homens.
Sua primeira parada foi no castelo, relatando sua missão. Horas depois chegou a vila e entrou em casa. Tudo estava quieto e escuro. Pelo horário, Sirena estaria trabalhando na loja da família que cuidava dela, mas Feron não se deu conta da grossa camada de poeira que cobria a casa.
Deixou suas coisas em um canto, e saiu, sem acender nenhuma vela. Cruzou com muitos que lhe davam as boas vindas de uma forma menos animada do que ele esperava, mas não se importou muito com isso. Levou cerca de vinte minutos para entrar na pequena loja de ervas medicinais.
- Olá. – Disse de uma forma geral.
- Feron! – Respondia o dono, surpreso com sua chegada. – Enfim voltou, rapaz. Ótimo vê-lo.
- Obrigado. Desculpe minha pressa, mas queria ver Sirena. – Olhou em volta, procurando pela moça. Só então notou que a esposa do dono havia parado de varrer a loja para ficar olhando o chão vazio. Que os filhos deles cruzaram olhares cheios de mistério. – O que houve?
- Ninguém lhe avisou, então. – A voz sussurrada do dono da loja trouxe uma errônea certeza à mente de Feron.
- Ela foi embora, não foi? Depois que eu a deixei sozinha aqui ela foi procurar felicidade em outro lugar, com algum homem melhor que eu. Não é isso? – Só parou de falar quando a voz da esposa do dono chegou cheia de dor.
- Feron... – Ela hesitava. – Sirena faleceu há três meses.
- Que disse? – Por um momento o choque dominou sua face, mas logo um estranho sorriso surgiu. – Não faça este tipo de brincadeiras, Senhora. Eu poderia ter acreditado.
- Há três meses... – O dono puxou novamente a atenção do cavaleiro. – Um grupo de ladrões do deserto invadiu a cidade durante a noite. Roubaram muitas casas e lojas. Eles disseram que as mulheres que se entregassem à eles como escravas seriam poupadas. Sirena resistiu...
- E os cavaleiros? Onde estava a guarda real quando isso aconteceu?
- Eles demoraram a perceber que algo de errado estava acontecendo. Quando souberam correram para cá. Os ladrões foram mortos por eles, mas muitas pessoas da cidade já estavam mortas. – Ele tirou o chapéu e o apertou contra o peito. – Sinto muito, Feron.
- Onde ela está? – A voz do cavaleiro parecia controlada, e ele reagia com frieza à notícia.
- Na colina do lado norte. – Respondeu o dono da pequena loja.
Feron deu meia volta e saiu da loja. Seguiu o caminho para os limites da cidade com a cabeça baixa, sem responder aos cumprimentos de ninguém. Passou pela última casa da cidade e iniciou uma breve sumida de grama. No alto da pequena colina, cercada por flores, estava uma lápide de pedra onde se lia: “Sirena Carmiel – Eterna Amiga”.
Foi neste momento, quando eu estava indo visitar o túmulo da moça, que cruzei com Feron, em pé diante do túmulo, sem qualquer reação.
- Enfim regressou, cavaleiro. – Abaixei-me para colocar algumas flores sobre a pedra, e rezei pela alma de Sirena.
- Por que ela está na colina? Por que não foi levada ao cemitério? – Feron estava realmente muito calmo e eu comecei a me perguntar se ele a havia esquecido. Minha resposta à pergunta dele trouxe uma solução para minhas dúvidas.
- Porque era neste exato local que Sirena vinha todas as tardes sentar-se por horas olhando para as trilhas esperando por sua volta. – Falei com a voz em tom normal. Minhas últimas palavras foram cheias de uma dor verdadeira. – Ela ainda está esperando.
Feron então abandonou sua máscara de cavaleiro perfeito quando seus joelhos arquearam até o chão e uma grande quantidade de lágrimas brotou de seus olhos. Ele começou a gritar o que eu achava ser para mim, porém logo vi que não.
- É verdade então? Você se foi? – Suas mãos agarravam punhados de terra e grama, enquanto ele olhava para o chão, quase como se pudesse vê-la sob a terra. – Eu nunca mais vou poder te ver?
Senti pena de Feron. Sua reação era totalmente diferente do que eu esperava. Era...Humana. Logo eu estava chorando ao lado do cavaleiro. Não sabia se o que eu faria depois traria alivio ou mais dor.
- Alguns dias antes do ataque, ela estava desesperada por seu regresso. Menti para ela e disse que o Rei estava enviando um mensageiro até vocês, que então se ela me desse uma carta, eu poderia fazer com que chegasse até suas mãos. – Tirei o papel amassado de meu vestido e o estiquei para o homem destruído. – É sua por direito.
Feron pegou a carta e a desdobrou com rapidez, lendo cada palavra. Vi seus olhos ficarem mais e mais úmidos, até novamente um choro infantil dominar o cavaleiro. Era a primeira vez que eu via Feron chorar, e talvez até fosse a primeira vez que ele chorava desde seus tempos de bebê.
Não sei dizer por quanto tempo mais durou seu choro, pois decidi deixar o cavaleiro com seus próprios pensamentos, mas várias horas depois ele continuava sentado ali, olhando para o túmulo. Já ficava tarde quando subi a colina para encontrá-lo adormecido sobre o solo, com a mão esticada tocando a lápide. Ao lado de sua mão estava uma pequena navalha e raspas de pedra.
Cobri Feron e o deixei adormecido naquele lugar. No dia seguinte, e em todos os dias que se seguiram, o cavaleiro subia a colina bem cedo, e narrava para o túmulo como havia sido seu dia anterior. Cerca de duas horas depois ele saia de lá e gastava o resto de seu tempo com os treinos. Jamais qualquer outra pessoa tornou a ver um sorriso na face de Feron. Ele apenas lutava e lutava sem parar.
Lutava uma batalha que nunca venceria, pois estava lutando contra o remorso de ter deixado para trás a pessoa que mais amava, a pessoa que mais o amou, sem dizer um último adeus, sem um último beijo.
Feron Kashthir precisou perder tudo que mais prezava nesta vida para compreender o que era sua maior prioridade. Precisou passar a ter o arrependimento como único companheiro para perceber que mesmo que se fique um ano ou um dia longe da pessoa, deve-se sempre tratar os últimos momentos juntos com extrema ternura, carinho e atenção, pois podem realmente serem os últimos momentos.
O cavaleiro faleceu trinta e dois anos depois, de uma doença grave. Seu corpo foi enterrado ao lado de Sirena, e em sua lápide vinha escrito: “Feron Kashthir – Nobre Cavaleiro”.
Uma noite, sentei-me ao lado dos túmulos e com uma faca entalhei a lápide do cavaleiro, da mesma forma que ele havia feito com a lápide de Sirena tantos anos antes. Após minhas alterações, se lia “Feron Kashthir – Nobre Cavaleiro e Protetor”. Já na lápide de Sirena, entalhado pelas mãos de Feron, também havia um complemento...
“Sirena Carmiel – Eterna Amiga e Grande Amor”.


“Meu querido Feron,
Não sei quando você terá a oportunidade de ler esta carta, mas eu queria ter a chance de me despedir. Quero lhe dizer como me sinto, e for por isso que quis escrever essa carta para você. Penso nos bons tempos que passamos juntos. Sempre que eu chorava, você me apoiava e era gentil comigo. Eu sempre estava triste porque sentia falta da minha família e você sempre me lembrava que eles estariam lá, em espírito, zelando por mim como anjos dedicados. Meu querido, seu amor, sua orientação e seu apoio me ajudaram a me transformar nesta jovem que eu sou hoje. Feron, não teria conseguido sem você. E agora quero que você me prometa que vai verter lágrimas pelas pessoas que estão feridas. Dê apoio emocional para os que estão tristes e ajude os mais fracos, porque ainda acredito que você fará nossos sonhos se tornarem realidade. Você é a luz da esperança, querido Feron. Quando as coisas ficarem difíceis, não esqueça que vou estar zelando por você, incentivando você, querendo que você vença. Lembre-se de tudo o que você já fez. Sinta orgulho em saber que você já ajudou as pessoas. Estou muito orgulhosa de você. Obrigada.
Está na hora de me despedir meu querido. Não podia ter tido um amor melhor.
Eu te amo. Sirena”.

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