Manuscritos do Silêncio

"O silêncio é capaz de expor um lado da humanidade que nem milhares de palavras seriam capazes de descrever." Sisá Fragoso - Manuscritos do Silêncio

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Anjo da Escuridão!



Desde tempos muito antigos. Desde os primeiros povos tomarem seus pedaços de terra pelo mundo, uma ameaça assombra lendas, sonhos e vidas.
Uma figura espectral de mantos pesados e negros, com longos cabelos lisos esvoaçantes e escuros como a noite. Seus olhos possuem um inumano tom cinza e ao mesmo tempo estranhamente brilhante, como relâmpagos a cortar um céu de tempestade. Um homem tão belo quanto mortal. Uma criatura eterna movida por um ódio que ninguém jamais soube, ou saberá, explicar. Um entre milhares de sua raça. Único em seu terror.

- BOO! – Eu não esbocei qualquer reação quando Lucy pulou detrás da porta da sala de aula naquela manhã. – Ah, fala sério! Nada?
- Você precisa ser mais furtiva se pretende assustar alguém, e não ficar com o topo de sua cabeça visível pelo vidro da porta. – Continuei andando pela sala até encontrar meu lugar. Em mãos um grosso livro que mesmo caminhando eu não parava de ler.
- Tanto faz. Mas e aí, que fantasia irá usar na festa? – Minha melhor amiga tinha toda a energia que um grupo de crianças de 5 anos poderia ter.
- Festa? – Não tirava os olhos do livro.
- Terra para Katie! Em que mundo você está, garota? – Lucy sentou-se na cadeira a minha frente. – A festa de halloween no ginásio esportivo.
- Ah.
Apesar de vivermos no século XXI, morávamos em uma daquelas cidadezinhas de interior com um número mínimo de habitantes, afastada de qualquer grande cidade, onde mesmo o menor dos eventos sociais reunia a cidade toda no salão da prefeitura ou no ginásio de esportes do colégio, os dois maiores prédios do local.
Quando não falei mais nada sobre o assunto que tanto empolgava minha amiga, Lucy se irritou.
- O que diabos você está lendo? – Esbravejou a garota de 17 anos ao tomar o livro de minhas mãos, lendo a capa. – Mitologia ou Realidade? Você acredita mesmo que essas histórias de criança dormir foram verdade algum dia?
- Claro que não! – Rebati, tomando o livro de volta. – Mas tenho que admitir que são bem interessantes.
- Tipo o que? Um lobo que anda e fala para perseguir uma criança com um mantinho vermelho?! – Lucy riu.
- Estamos falando de mitologia, Lucy. Não de conto de fadas. – Virei o livro em uma página aberta para que ela pudesse vê-lo melhor. – Por exemplo, já ouviu falar em Caim?
- Não foi o cara que matou o próprio irmão ao qualquer coisa assim? – Ela nem ao menos olhava para o livro.
- Ou qualquer coisa assim... – Suspirei buscando paciência. Havia momentos em que eu não sabia se a ignorância de Lucy era real ou auto-induzida. – De toda forma...Biblicamente se conhece este Caim que matou Abel, e blábláblá. Mas há relatos mitológicos mais antigos que citam uma espécie de Anjo Negro chamado Caim.
- Anjo Negro?
- Sim. Segundo este livro, ele foi criado pelos Deuses, assim como todo o mundo, mas por motivos que ninguém jamais soube, Caim deixou nascer em si um ódio descomunal pela humanidade, e há eras ele aparece no plano mortal para levar almas para sua coleção particular.
- Ai credo, Katie! Como você acha isso interessante? É horrível. – Era minha vez de ignorá-la.
- Aqui tem uma descrição do que acontece momentos antes de sua chegada. Oh... – Parei. Reli mais duas vezes o último parágrafo. Logo eu ri. – Isso é realmente interessante.
- O que? – Lucy agora parecia interessada.
- Aqui diz que durante a noite de todos os santos, quando as barreiras entre o mundo imortal e o mortal ficam mais fracas, Caim regressa para buscar almas. Sabe como as pessoas chamam a Noite de Todos os Santos? – Um sorriso sinistro tomou minha face.
- Como? – Minha amiga se encolhia.
- Halloween! – Subitamente bati as mãos na mesa e forcei um riso sinistro que fez com que Lucy derrubasse a cadeira quando o susto a pegou de jeito.
Eu ria com vontade do susto que provoquei em Lucy, e ela brandia xingamentos contra mim. Alguns minutos mais tarde o professor entrou, seguido de mais alunos, e mais um dia comum na escola se iniciou.

Já passava da hora do almoço quando todos foram liberados de suas aulas. Minha irmã mais velha estaria trabalhando como sempre. Nossos pais haviam falecido em um acidente muitos anos antes, mas eu não me fazia digna de dó por isto.
Saí pelos portões da única escola da cidade e rumei para meu local favorito.
- KATIE! – Lucy vinha correndo. – Espero você na minha casa as oito da noite para irmos juntas para a festa, certo?
- Como quiser, Lucy. – Eu não queria estar nesta festa, mas sempre fui muito difícil para eu ignorar todo o carinho de minha amiga por mim, assim eu fazia as vontades dela. – Mas por enquanto vou até a colina continuar lendo.
Separei-me de minha amiga ainda nos muros externos do colégio, e continuei meu caminho. A colina marcava os limites da pequena cidade e depois dela haviam apenas longas planices. Era um hábito meu sentar-me no topo da colina para ler ou pensar. Desta forma o dia passava sem que eu tivesse qualquer noção. Desta vez não foi diferente.
O sol tingia o céu de laranja quando me dei conta de que estava forçando demais os olhos para enxergar as linhas do livro. Puxei o celular do bolso e me choquei com a hora tão avançada.
- Droga. Melhor correr. Vou acabar me atrasando para encontrar com a Lucy! – Coloquei o livro sob o braço, a mochila em um dos ombros e me levantei apressada. Ainda não tinha nenhuma fantasia, mas faria como muitas mulheres na história. Colocaria um vestido preto, maquiagem pesada, e diria que estava fantasiada de bruxa. Nunca falha.
Desci a colina correndo e ao chegar no fim perdi o equilíbrio. Para não cair de cara na terra, me escorei em uma árvore no caminho. O impacto fez a árvore vibrar e uma revoada de pássaros se espalhou pelo céu.
Parei observando.
O que eu achava serem alguns pássaros comuns da região, na verdade era um número muito grande de corvos. Alguns voltaram aos galhos da árvore, outros persistiam de voar em círculos como abutres famintos, sempre grasnando e me causando arrepios.
Jamais havia visto uma ave daquela em todos os anos em que moro nesta cidadezinha, agora dúzias estavam ali.
O sol continuava a sumir no horizonte, e o céu passava de laranja para vermelho vivo, contrastando de forma sinistra com a presença daqueles corvos. Quando um vento realmente forte pareceu surgir do nada, as aves se revoltaram e começaram a voar sem sentido, algumas se chocando com as outras.
Dois deles mergulharam em minha direção e eu caí de joelhos para evitar o impacto. Com o movimento súbito, o livro sob meu braço caiu ao chão aberto em uma página qualquer, mas o vento sinistro se encarregou de exibir uma página em especial.
Ainda abaixada, meus olhos correram novamente pelas linhas que já havia lido horas antes. Meu coração disparava cada vez mais.

“Quando o Sol deixar de brilhar e o céu se tingir de sangue, os mensageiros do inferno cantarão em voz ensurdecedora”.

Os corvos grasnaram com afinco e parecia que meus tímpanos iriam estourar. Cobri as orelhas com as mãos e olhei para as aves negras cruzarem sem rumo o céu avermelhado. Baixei os olhos novamente para o livro.

Os ventos sombrios se encarregarão de exterminar as últimas luzes que o Sol não levou”.

Mal eu acabava de ler, um barulho estrondoso me fez virar na direção da cidade. Os fios dos postes de eletricidade não suportaram a força do evento e alguns se romperam, lançando fagulhas e estourando os distribuidores. Em segundos toda a cidade estava imersa na escuridão.

“E então, quando o desespero subjugar a lógica dos mortais, o caos dominará os caminhos dos inocentes”.

Com o apagão, todas as pessoas saíram às ruas, mulheres estavam assustadas, crianças choravam a plenos pulmões e os homens gritavam confusos, tentando fazer suas vozes superarem os ventos fortes.
Abandonei o livro onde estava, e corri de volta para a cidade. Era difícil, o vento me jogava para os lados, e os corvos sobrevoavam meu caminho. Vidros e janelas das casas e lojas eram estilhaçadas pelo vento.
A última parte do texto do livro fez eco em minha mente quando alcancei a cidade.

“Somente quando a noite reinar, os mensageiros se calarão e os ventos sombrios irão cessar sua violência sob o comando de seu mestre. É a hora do pior dos pesadelos”.

O vento parou como se nunca tivesse estado ali. Os corvos pousaram sobre as casas e postes no mais completo silêncio. Os moradores da cidade sussurravam assustados, temerosos que suas vozes trouxessem de volta aquele estranho fenômeno natural. Natural?
Em algum local da cidade, pouco longe de onde eu mesma estava, alguém gritou. Segundos depois mais gritos vieram. Os berros de dor e desespero pareciam se aproximar, vindos do lado sul ao norte da cidade, varrendo tudo no caminho. O nome de Deus era clamado. Piedade era implorada. Os gritos continuaram.
Minha mente cética entrou em colapso e o desespero dominou a minha alma quando entre os vultos que corriam e gritavam, eu vi um vulto alto que simplesmente caminhava em linha reta pela rua principal. O vento o seguia. Os corvos se encolhiam com sua aproximação. Os mortais eram retalhados ao seu toque.
Por instinto, ou talvez somente por medo, eu corri para o lado de onde tinha vindo, em sentido contrário ao algoz que exterminava a vida de uma cidade inteira.
Acabei por tropeçar no livro que havia abandonado ali. A página virou e eu olhava para uma ilustração antiga, feita ainda a carvão, idêntica ao sinistro vulto que varria minha cidade diante de meus olhos.
Eu chorava e tremia violentamente sabendo o que me aguardava. Não conseguia levantar. Minhas pernas não respondiam. Aquele homem cruzou toda a cidade e parou olhando para o caminho de onde viera, como se admirasse sua obra. A cidade agora estava no mais absoluto silêncio.
Um corvo voou baixo e eu gritei por reflexo. Assim que tomei ciência do que este grito tinha feito, eu chorei ainda mais.
O homem se virou lentamente em minha direção e voltou a caminhar. Se eu tivesse permanecido caída e em silencio, ele teria desaparecido sem dar-se conta de minha presença. Mas aquele animal estúpido me fez gritar e agora eu teria o mesmo destino que o resto da cidade.
Quanto mais perto ele chegava, uma série de cortes surgia em meu corpo, como se uma chuva de navalhas invisíveis cruzasse o ar em minha direção. Eu gritei vendo meu próprio sangue escorrer para fora de meu corpo em grande quantidade.
Mãos invisíveis seguraram meu corpo e o torceram em posições fisicamente impossíveis e os ossos sendo quebrados podiam ser ouvidos com facilidade. A dor me consumiu e eu gritei até minha voz não agüentar mais.
Ele estava agora a poucos passos de mim. Com seu manto negro, os cabelos longos, os olhos gélidos. Era ele. O Anjo da Escuridão. Caim era real.
Caim tirou do bolso uma esfera do tamanho de uma bola de bilhar, translúcida que emanava um brilho rubro singelo. Olhei fixamente para aquela aparente bola de cristal vermelho e pude ver almas atormentadas, presas em uma dimensão terrível dentro da pequena esfera. Seus rostos exibiam uma dor sem igual e suas lágrimas eram sangue. Pouco a pouco eu me sentia sugada para aquela esfera e nada me fazia tirar os olhos daquele sofrimento.
Quando meu corpo caiu inerte no solo tingido por meu sangue, Caim levou a bola de cristal rubro novamente para o interior de seu manto negro e o “Globo das Almas” foi guardado.
Caim focou os olhos no livro ao meu lado, agora com grandes manchas vermelhas ainda úmidas. O Anjo Negro abaixou e pegou o livro em mãos. Seus olhos gélidos correram algumas linhas e um sorriso demoníaco brotou em seus lábios.


Quando o Sol deixar de brilhar e o céu se tingir de sangue, os mensageiros do inferno cantarão em voz ensurdecedora. Os ventos sombrios se encarregarão de exterminar as últimas luzes que o Sol não levou e então, quando o desespero subjugar a lógica dos mortais, o caos dominará os caminhos dos inocentes.
Somente quando a noite reinar, os mensageiros se calarão e os ventos sombrios irão cessar sua violência sob o comando de seu mestre. É a hora do pior dos pesadelos.
Se sua alma é mortal, acredite nestas palavras...
Quando o Anjo da Escuridão pisar neste mundo... É o fim da esperança.

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