Manuscritos do Silêncio

"O silêncio é capaz de expor um lado da humanidade que nem milhares de palavras seriam capazes de descrever." Sisá Fragoso - Manuscritos do Silêncio

sábado, 2 de julho de 2011

Possuída



Estava exausta, mas continuava empolgada. Eu me sentia assim todas as vezes que saia do palco. As luzes já haviam sido apagadas, mas os fãs continuavam a gritar para que houvesse mais.
Sou a vocalista de uma banda que mistura punk e pop, além de ser a única garota no grupo de cinco. Começamos nossa carreira profissional há apenas 6 anos, mas já fazemos turnês mundiais e vendemos milhares de discos. O tipo de vida que muitos sonham em ter.
- Outro show incrível. Uhul! – Lukas, o baterista da banda era o último a descer a escada que ligava os bastidores ao palco.
Uma série de funcionários corria de um lado para outro, falando em seus pequenos rádios, mas nós cinco continuávamos parados perto da escada, ouvindo os fã que ainda gritavam.
- Se eu pegar outro público animado assim acabo perdendo a voz. – Bebi um bom gole de água da garrafa em minhas mãos, recuperando o fôlego.
- Verdade? Deixa eu cuidar da sua voz então... – O guitarrista principal, e não por acaso meu namorado, me colocou contra a parede para me dar um belo beijo.
Ri durante o contato enquanto ouvi os outros simularem o som de alguém vomitando. Logo eles também riam.
- Preciso de um banho. – Soltei-me do abraço e comecei a andar para os camarins.
- Boa idéia, Avery. Posso te ajudar com o sabonete. – O risinho e a mão boba de Lukas chegaram perto de mim, mas não me importei. Há anos que este tipo de provocação era para outra pessoa e não para mim.
- Nossa, Zack, vai deixar? – O baixista, Evan, instigava.
- Quebra ele! – Era a vez do segundo guitarrista se manifestar. Para Joshua tudo se resolvia no soco.
Zack riu e começou a andar atrás de nós, sendo seguido pelo resto da banda. Mal havíamos nos afastado da escada quando uma toalha molhada de suor atingiu a nuca de Lukas.
- Se não tirar a mão da cintura dela, te faço engolir suas baquetas. – O guitarrista decidia entrar na brincadeira e fazia voz de bravo.
Dessa forma animada seguimos até os camarins. Os quatro meninos dividiam o mesmo enquanto eu tinha o meu próprio, não por capricho, mas por razões moralmente óbvias. Não éramos mais crianças. Todos tínhamos idades entre 20 e 23 anos. Camarins separados eram o mínimo que nossos pais esperavam dos produtores.
Agora longe do palco, apenas nossas vozes eram ouvidas no corredor, seguidas dos sons das pequenas correntes. Como eu disse antes, formamos uma banda de punk e pop. Nosso visual faz jus ao estilo.
- Grande show, pessoal. – Simone, nossa empresária dava os parabéns ao cruzar conosco no corredor. – Ah, Avery. Faz alguns minutos que entregaram um lindo buquê de flores para você. Deixei no seu camarim.
- Obrigada. – Sorri apoiando a mão no trinco da porta. Os meninos seguiram pelo corredor até a porta seguinte e Simone atendia ao celular ao mesmo tempo em que andava apressada.
Entrei no camarim e respirei fundo, feliz por mais um show ter terminado tão bem. Olhei em volta para a penteadeira repleta com a maquiagem, o sofá, os figurinos, alguns presentes e mimos dos fãs, até que notei em cima da mesa o tal buquê de flores.
Aproximei-me um tanto confusa e o peguei nas mãos. Simone havia dito que era um lindo buquê, e que havia sido entregue há poucos minutos, mas o que havia em minhas mãos era uma dúzia de rosas mortas. Havia um cartão no meio das pétalas. Abri o pequeno retângulo e apenas uma palavra estava escrita.
“MENTIROSA”.
Amassei o cartão e deixei as flores sobre a mesa. Só podia ser alguma brincadeira de mau gosto.
Puxei uma tolha de cima do sofá e rumei para o banheiro. No caminho desamarrei e abandonei as botas de cano alto, tirei a meia-calça rendada, o cinto de correntes, pulseiras e anéis. Já no banheiro tirei a saia, a blusa e as peças íntimas.
Liguei o chuveiro e comecei a prender meu cabelo. O que eu mais mudava era meu cabelo. Cores e cortes, mas sempre comprido. Agora ele estava na altura de minha cintura, liso, preto com luzes em um vermelho forte.
Enfiei-me de baixo da água quente e senti todo meu corpo relaxar. Fechei os olhos e deixei a água cair em meu rosto, enquanto cantarolava uma de minhas músicas. Parei de cantar quando ouvi a voz de alguém no banheiro. Olhei pelo box de vidro e não havia ninguém.
- Imaginação... – Sussurrei. Provável que meus ouvidos estivessem afetados pelo som alto do palco. Ignorei isso e voltei para o banho.
Demorei cerca de vinte minutos até sair enrolada em uma toalha. Parei diante do espelho embaçado pelo vapor e levei um susto, me virando rápida. Não havia ninguém atrás de mim, mas eu podia jurar ter visto um vulto pelo espelho. Meu coração estava acelerado e me virei aos poucos para olhar novamente o espelho.
No vapor do espelho estava escrito “Mentirosa”. Eu gritei. Como aquilo havia ido parar ali? Há cinco segundos eu havia olhado para o espelho, e não havia nada escrito. Por entre as letras, via o reflexo de meu próprio rosto. Algo ali me perturbou. Meus olhos estavam verdes e sempre foram de um tom de castanho escuro. Eu não usava lentes coloridas. Gritei de novo e caí sentada no banheiro, abraçando meus próprios joelhos. Quase imediatamente a porta foi aberta com força.
- Avery! – Zack foi o primeiro a entrar, ignorando qualquer coisa e indo me abraçar no chão.
Lukas, Joshua e Evan estavam logo atrás, olhando em volta, no camarim e no banheiro, assustados, preocupados.
- O que foi? Tinha alguém aqui? Por que você gritou? – Zack me enchia de perguntas e eu ainda não conseguia falar direito. Tudo aquilo só podia ser coisa da minha cabeça e se eu falasse tudo para eles só achariam que estava louca.
Forcei um sorriso e tirei forças não sei de onde para inventar a desculpa de que achava ter visto uma aranha enorme. Eles riram e me provocaram chamando de medrosa. Logo foram saindo, mas Zack decidiu ficar por perto. Secretamente agradeci por isso.
Ele já havia tomado banho e se vestido. Não que suas roupas habituais fossem muito diferentes dos figurinos do palco, mas ele dizia que se sentia melhor com suas roupas. Usava um All Star rabiscado por ele mesmo, jeans rasgado, camiseta preta, além das correntes em pulsos e pescoço. Seu cabelo loiro estava molhado e desalinhado. Agora Zack se ocupava em recolocar os três brincos que usava na orelha esquerda.
Levou cerca de duas horas para que todos estivessem prontos para voltar para o hotel. Uma van com vidros filmados nos levou em segurança e subimos até nosso andar. Lukas e Evan dividiam um quarto. Zack e Joshua outro. Eu ocupava o terceiro.
- Posso entrar? – O guitarrista já estava dentro quando perguntou, mas ainda sim eu respondi que podia. – Tudo certo com você?
- Hum? – Logo me lembrei da mentira sobre a aranha. – Ah! Claro. Só me assustei com a aranha.
- Aquilo não foi um susto, Avy. Você gritou como se estivesse sendo esquartejada. – Ele se aproximou e me abraçou com força. – Quer que eu fique aqui essa noite?
Retribui o abraço e respirei fundo, sentindo o cheiro de seu perfume, um aroma que eu realmente amava. Ensaiei um sorriso que mostrei para ele.
- Estou bem, Zack. Sério.
- Certo. Tente dormir então. Amanhã cedo temos a sessão de fotos.
Ele desistiu de tentar discutir comigo e se despediu, reforçando diversas vezes que estava logo ali do outro lado da parede. Quando meu namorado saiu, me larguei na cama, olhando para o teto. Tudo isso estava sendo muito louco.
- Deixe de besteiras, Avery. Você está cansada. Só isso. – Falava comigo mesma, me levantando e indo até uma de minhas malas.
Remexi uma pequena quantidade de livros e revistas até encontrar algo para me distrair. Coloquei todo o resto em uma pilha sobre a mesa de centro e voltei para cama. Li alguns parágrafos de um artigo sobre moda e logo adormeci, com a mesma roupa que estava.
Um barulho em meu quarto me fez acordar em um pulo. Minha mão voou para o interruptor e a luz se acendeu. Não havia ninguém no quarto, nem mais nenhum barulho. Sentei na cama e esfreguei a mão no rosto. Quando voltei a olhar em volta notei que a pilha de livros havia caído de cima da mesa e se espalhado pelo chão. Então havia sido este o barulho.
- Mas... Como isso caiu? – Levantei e fui para perto. Comecei a recolher os livros quando algo me chamou atenção. Um livro caiu aberto em um capítulo cujo título era “Doces Mentiras”. Aquilo me perturbou. Fechei o livro e o coloquei na mesa com os outros.
Um pequeno álbum de fotos também estava na pilha e acabou no chão. Quando o ergui, uma foto escorregou para o chão. Nela estávamos Zack, uma outra pessoa e eu, há quase dez anos. Meu rosto na foto estava totalmente rabiscado. A porta do quarto se mexeu como se alguém a tivesse forçando do lado de fora. Levantei com cautela e cheguei mais perto, ainda com a foto nas mãos. Seria um ladrão? No hotel?
- Quem é? – Falei do lado de dentro. Não houve resposta. A porta continuou sendo forçada. – Responda!
A porta parou, mas não ouvi passos se afastando, nem a voz de ninguém. Com uma coragem não natural de minha parte, abri a porta com vontade. Ninguém. Dei um passo para fora e olhei para os dois lados. Apenas o corredor do hotel. Voltei para dentro do quarto e fechei a porta, apoiando a testa na mesma.
- Mentirosa. – Alguém sussurrou atrás de mim. Virei-me novamente para encontrar absolutamente nada.
Lembrei da foto em minhas mãos, que misteriosamente estava rabisca bem em cima do meu rosto. Voltei a observá-la. A terceira pessoa na foto era uma amiga de infância minha e do Zack. Nossa banda começou como um trio. Trayci e eu nutríamos uma paixão secreta pelo guitarrista, e por nossa amizade decidimos não forçar nada com ele.
Costumávamos ser os melhores amigos do mundo. Tray escrevia as músicas, Zack colocava a melodia, e eu fazia as coreografias que todos faríamos enquanto cantávamos. Mas...
Há quase oito anos, Tray não apareceu na escola, nem no ensaio, e quando fomos à sua casa a noite, a mãe dela disse que ela saiu no horário de sempre. A policia a encontrou no dia seguinte, em nossa velha casa na árvore. Tray havia cortado os próprios pulsos.
Ao lado dela estavam três cartas. Uma para a mãe, pedindo desculpas por isto e dizendo o quanto a amava. A segunda era para Zack, confessando todo o seu amor. A última para mim, tendo apenas duas palavras no papel: Traidora. Mentirosa.
Cerca de um ano depois conhecemos os meninos que agora compunham o resto da banda, e há três anos que Zack e eu assumimos um relacionamento.
- Traidora. Mentirosa. – Um sussurro. Eu parei, sem olhar para nenhum lado. A voz veio mais alta. – Traidora. Mentirosa.
Com relutância fui erguendo os olhos. No centro do quarto estava uma garota em pé. Sua calça jeans estava suja e a camiseta branca tinha grandes manchas vermelhas. O cabelo ruivo estava liso e encobrindo parte do rosto. Os olhos eram fundos e raivosos, mas com uma fabulosa cor verde.
- Traidora. Mentirosa. – Repetiu a garota morta em meu quarto de hotel.
- Tr... Tray? – A foto deslizou de meus dedos para o chão. O cabelo ruivo, os profundos olhos verdes, sem dúvida era a mesma garota.
- Traidora. Mentirosa. – Era tudo o que Tray dizia. Os olhos verdes estavam cravados em mim. Seus pulsos escorriam muito sangue que acabava sendo absorvido por suas roupas.
- Por... Por que está dizendo isto? – Meu corpo estava colado com a porta. – O que eu fiz?
Ela não falou mais nada. Ficava agora olhando para o chão. Não podia mais ver seus olhos. Logo ela começou a falar baixo, mais para ela mesma do que para mim.
- Roubou... Roubou tudo que era meu. Avery roubou tudo de mim. Tudo o que era meu, Avery pegou para ela. Traidora. Mentirosa. Avery foi a culpada. – Tray ergueu os pulsos para olhar os cortes.
- Do que está falando? – Estiquei minha mão até a maçaneta da porta. Morta ou não, ela estava longe. Eu poderia correr.
Tray sumiu no ar. Continuei imóvel, olhando para onde ela deveria estar. Subitamente a ruiva apareceu extremamente próxima a mim. Seus olhos verdes cheios de ódio estavam olhando fixo para os meus, arregalados e intimidadores.
- Você roubou tudo de mim! – Ela gritava, há centímetros de mim. – Minhas músicas, você canta como suas. Minhas roupas, você usa e diz que é seu estilo. Sua mentirosa! Você quebrou nossa promessa, deu em cima do Zack e o pegou também. Traidora! Você tirou tudo de mim! Você me matou!
- Não... Não... Eu não fiz nada... – Meu corpo parecia pesar demais, e fui me encolhendo até estar sentada no chão. – As músicas...Você fez pra nós... Seu estilo eu só admiro... E o Zack... Meu Deus... Você tinha se matado...
- VOCÊ ME MATOU! – A ruiva morta berrou próxima ao meu ouvido. – Foi por sua causa que eu fiz aquilo. A culpa é sua, Avy. Sua vida era pra ser a minha. Minha fama. Meu sucesso.
Eu comecei a chorar, fechando os olhos. O medo me consumia com facilidade. Não conseguia encarar aqueles olhos verdes, os mesmos olhos que vi no espelho horas antes. Por que ninguém vinha me ajudar? Estava assustada.
Tremi violentamente quando dedos frios deslizaram pelo meu cabelo em um tipo de carícia macabra.
- Tudo bem, Avy. Vai ficar tudo bem. Seus fãs ainda vão te ver no palco, ainda ouvirão suas músicas. O Zack... – Ela fez uma pausa, repetindo a carícia várias vezes. Sua voz agora era terna. – Ele ainda vai namorar essa garota linda que você é. Tudo ficará bem, Avy.
De alguma forma a voz foi ficando mais afastada e meu coração foi desacelerando. Meu choro parou e senti segurança para abrir os olhos. Eu estava sentada sozinha em um lugar totalmente escuro.

Zack bateu na porta do quarto de hotel bem cedo. A sessão de fotos seria logo e para variar a vocalista, única mulher, era a última a ficar pronta.
- Podemos ir andando, Punk Princess? – O apelido que a mídia havia dado era de certa forma muito fofo.
- Claro. Já estou pronta. Zack...
- Diga. – Ele usava o espelho para dar um retoque em seu cabelo.
- Senti tanto a sua falta...
- Do que está falando, Avy? Eu estava aqui ontem à noite. – Ele riu e se aproximou para um abraço. – Mas você fica linda falando isso. Hey! Está usando lentes coloridas? Ficou legal com os olhos verdes.
- Obrigada, Zack.
Como prometido, o mundo continuou a ouvir as músicas de Avery. Continuou a vê-la no palco, na TV, nas revistas... E o Zack continuou a namorar aquela garota bonita. As lentes coloridas eram moda por isso ninguém estranhou a mudança drásticas nos olhos da cantora, e com o tempo todos os fãs se habituaram aos novos olhos verdes de Avery, e seus velhos olhos castanhos foram esquecidos para sempre.

Um comentário:

  1. Amiga nossa que medo. Adorei seu conto a maneira como você descreveu os personagens, excelente. Adorei o visu do blog. beijos

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