Manuscritos do Silêncio

"O silêncio é capaz de expor um lado da humanidade que nem milhares de palavras seriam capazes de descrever." Sisá Fragoso - Manuscritos do Silêncio

sábado, 2 de julho de 2011

Conexôes Obscuras



Little Acher é uma pequena vila no oeste de Massachusetts, Estados Unidos. Apesar de estarmos no ano corrente, repleto de aparelhos eletrônicos modernos, Little Acher parou no tempo. Como sua cidade vizinha, Salem, a pequena vila manteve seu ar puritano e suas lendas místicas que tanto medo trouxeram em 1692. Mas agora novos medos aterrorizavam os 40 mil habitantes de Little Acher. Assassinatos macabros estavam por acontecer em diversas partes da vila, e atingindo as mais diversas classes de pessoas.
Abigail Williams completara 20 anos meses antes, e há 18 residia internamente no orfanato de Little Acher, após a estranha morte de seus pais. Recentemente vivia entristecida, sempre se lembrando que em apenas mais um ano teria de deixar o orfanato e se virar sozinha por um mundo que não conhecia e onde não tinha nada.
Desde os seus 15 anos, Abigail descobrira um pequeno túnel que ligava a cozinha do orfanato com um poço do lado externo do terreno cercado por muros, e constantemente fugia para os bosques e campinas em torno da cidade. Em um destes passeios mais atuais, encontrara um homem adormecido sob um carvalho e sua aproximação o despertou.
Jack, como se apresentou, disse não ter família, não ter um lar, não ter nem ao menos um sobrenome. Era alto, com um porte físico atraente. Tinha os cabelos louros e um pouco desalinhados, mas isso o deixava com certo charme. Não teria mais que 25 anos, e trajava-se sempre com um sobretudo negro. Comovida pela história de Jack, Abigail passou a visitá-lo no bosque todos os dias, sempre levando consigo algum alimento roubado da cozinha do orfanato.
Naquela manhã fria em outubro, Abigail se esgueirou pelo túnel e correu até o bosque. Mas seu amigo não estava no lugar de costume.
- Jack? – Chamou por ele algumas vezes.
- Olá. – O homem de frios olhos azuis apareceu detrás de uma árvore, assustando a moça.
- Cristo! Não me assuste desta forma.
- Desculpe-me. Eu estava caminhando e ouvi teu chamado.
Como em todos os dias, Abigail e Jack sentaram-se sobre as folhas e a grama e conversaram por longas horas. Geralmente sobre assuntos irrelevantes, mas nesta em especial sobre algo importante.
- Ouviu as notícias? Encontraram outro corpo. Bom, parte de um. – Abigail sussurrava, como se as árvores pudessem ouvi-la e revelar seus segredos. – Estava cortado pela cintura, e com as pernas esticadas. Como se estivesse sentado, sabe? Disseram calçar elegantes saltos vermelhos.
- Estive ouvindo que a filha mais nova do doutor Anderson desapareceu. É provável que se trate dela. – Jack pegava folhas nas mãos e as picotava antes de jogá-las no ar em uma fracassada tentativa de confetes.
- Ora, mas será uma pena se for. Isso está me assustando. Com este corpo já são 16 encontrados. Começou-se com aquele garoto que vendia jornais na praça, acharam-no na cerca do jardim. Depois foram a esposa e a filha do dono da mercearia.
- Estavam deitadas em suas camas, com seus ventres. Acusaram o marido e pai, não? – Jack procurava lembrar-se.
- Sim. E seguiram-se tantos outros...A cidade está um caos completo.
- Claro que está. Os habitantes de Little Acher estão sendo exterminados um após o outro, de formas hediondas, e ninguém sabe por quem.
À tarde já caia pesada sobre o bosque. O tom alaranjado do céu denunciava a chegada da noite. Jack olhou para o céu por algum tempo, antes de voltar o olhar para a jovem.
- Deve regressar. Logo será noite. Não quero que ande por estes caminhos desertos estando só.
- Preocupa-me você. Aqui sozinho.
- Ninguém sabe de minha existência aqui. Estou em segurança. Agora vá.
Abigail rumou novamente ao orfanato e assim que deixara a cozinha, esbarrou com uma mulher no corredor.
- Senhorita Abigail. Que fazia na cozinha?
- Madre. – Uma velha senhora cheia de seus rancores do passado que entregara sua vida as orações e a disciplina no orfanato.
- Estava roubando?
- Não! Eu não!
- Já basta, senhorita Abigail. Será confinada em teu quarto e de lá não sairá até a manhã. Também não irá comer, de certo. – Pegou a menina pelo braço e a arrastou pelos corredores vazios do orfanato.
Abigail chorava e implorava para que não fosse levada ao confinamento, pois sabia que durante as horas da noite uma freira, provavelmente a própria madre, entrava no confinamento e dava surras de vara de bambu. Mas de nada adiantou. Abigail foi trancada, e durante várias horas ouviram-se os seus gritos de dor abafados pelas pesadas portas do orfanato.
Na manhã seguinte outras internas se ocupavam em fazer pequenos curativos nos ferimentos de Abigail, e o silêncio reinava na instalação. Esperou-se que todas se ocupassem com suas coisas para que Abigail fugisse para os bosques novamente.
Jack chocou-se com os ferimentos da menina e um misto de irritação e pena se formou em sua face. Abigail apenas sorria e dizia que já não estava mais doendo e que logo estaria curada. Jack lembrava-se do dia em que Abigail dizia ter ouvido a Madre conversar com um velho gorducho e risonho, e diziam que aos 21 anos da menina o velho a levaria para casa dele, e ela lá serviria para o que servem as mulheres: satisfazer um homem.
A menina optou por assuntos triviais naquele dia, tentando ignorar toda a dor que ainda sentia, e a lembrança de tal conversa. Jack estava calado e pensativo, apenas emitindo alguns “ah” ao que Abigail dizia. As horas passaram, e por mais um dia a jovem deixou o estranho conhecido no bosque e rumou para o orfanato. A noite passou tranqüila em Little Acher, com uma temperatura agradável e sem os uivos dos cães, porém assim que o sol se mostrou no céu, gritos de horror explodiram no orfanato de Little Acher, e momentos depois no banco da cidade.
As freiras tentavam conter as internas que corriam para o pátio para entender o motivo dos gritos, enquanto a policia fazia o possível para cercar a visão macabra de uma mulher nua, amarrada com arame farpado na cruz que adornava o pátio. O arame perfurava sua carne em vários pontos e tanto seus olhos como sua boca estavam costurados. A agulha de costura ainda pendia balançante, presa pela linha em um dos cantos da boca da mulher. Não tão longe, no centro comercial de Little Acher, outros gritos e correria para encobrir o corpo do dono do banco da cidade, um velho gorducho e risonho, que agora estava cortado ao meio na vertical. O homem que escravizaria Abigail, e a Madre do orfanato, estavam agora mutilados e mortos.
Os jornais locais anunciavam em todas as páginas. As pessoas não falavam em outra coisa. Já eram 18 os mortos em Little Acher, e de formas cada vez piores. A policia foi inteira mobilizada, e até forças policiais das cidades vizinhas foram chamadas. Os crimes não tinham nada em comum, as vítimas não tinham nada em comum, ou talvez tivessem, e ninguém havia percebido ainda.
Por uma semana decretou-se toque de recolher às 18 horas, e por uma semana não houve crime. Uns diziam que o assassino seria então alguém da cidade, por estar respeitando o toque de recolha. Outros diziam que era alguém de fora, que só não tinha matado novamente pois não havia ninguém nas ruas para se fazer de vítima. Hipóteses. Suposições. Acusações. Vizinhos foram colocados contra vizinhos. Amigos de infância alegavam coisas absurdas e motivos torpes para crimes nem ao menos cometidos.
Nos dias seguintes as mortes continuaram. Pessoas e mais pessoas eram encontradas aos pedaços pela cidade de formas cada vez mais doentias. Naquela noite o cheiro da morte parecia flutuar pelas ruas desertas de Little Acher. Os cães ladravam compulsivamente, sem intervalo, e o som começava a incomodar quem tentava em vão adormecer. Alguns moradores se revezavam em turnos noturnos, escondidos em suas casas, olhando pelas frestas das cortinas, buscando algum movimento fora do comum. E naquela noite alguém viu algo.
Passava do meio dia quando o jornaleiro local gritava na praça a nova edição da Gazetta de Acher, com uma história que era ao mesmo tempo útil, e ao menos tempo inútil.
*
__ “Na última madrugada, por volta da 1 hora e 45 minutos da manhã, um morador de Little Acher estava em sua sala, olhando pela janela, quando deu por conta do latido de um cão solitário pela alameda nove. Atento ao cão, o referido morador pode vislumbrar um vulto humano que andava silenciosamente. Temendo por sua segurança e de sua família, o morador apenas observou. O vulto parecia se mover sem destino, chegando até a andar em círculos. O cão mencionado a cima circundava o vulto e latia com ferocidade. Foi neste momento que o vulto ergueu a mão e a iluminação precária da alameda fez brilha uma faca em suas mãos. A lâmina desceu rápida rumo ao animal que foi logo abatido. Após o primeiro golpe, o vulto ainda passou alguns minutos a perfurar o cão com a lâmina. O morador afirma que algo deve ter chamado a atenção do suposto assassino, pois subitamente ele parou o que fazia e saiu correndo em direção aos bosques.
__Pela manhã, civis encontraram os restos do animal morto, e a faca permanecia fincada na carne.
__Estamos aterrorizados por não saber de quem se trata, uma vez que o morador testemunha não se sente confiante em afirmar se o vulto se tratava de homem ou mulher”.
    *
Logo que a notícia se espalhou as fofocas começaram, e não tardou para que tais fatos alcançassem as internas do orfanato de Little Acher.
Abigail estava confusa, mas não hesitou em correr para a cozinha e usar-se do túnel secreto para fora. Precisava ver Jack naquele instante. Talvez ela ainda não tivesse se dado conta de todas as possibilidades daquela história.
- Jack! JACK? – Gritava enquanto corria.
- Que há? – O homem a segurou pelos braços, a fazendo parar. – Acalme-se.
- Oh meu Deus, Jack. Alguém viu o assassino pela cidade, e diz que o viu fugir para cá. Meu Deus! Meu Deus! Farão buscas. Não pode permanecer aqui, Jack. Se eles o acharem vão suspeitar de você. Espere... – Abigail parou, olhando para ele. – Jack, por que você vive aqui escondido? – Pela primeira vez a moça pensava nisso.
- Eu não sei. – Simples.
- Por que não vai para cidade, procurar uma casa para ficar?
- Eu não sei. – Novamente.
- Jack, você...você não tem nada com essas mortes, não é? – Dava dois passos para trás.
Silêncio.
- Meu Deus... – Se afastava. – SEU MONSTRO! – Abigail deu as costas e correu. Correu por um tempo sem olhar para trás. Temia estar sendo seguida. Jack era um assassino. Jack ia matá-la. O medo a impedia de pensar com coerência.
Alcançou o poço, correu pelo túnel e se isolou no orfanato. Chorou durante todo o dia, e se assustava com qualquer batida em sua porta. As outras internas estavam preocupadas com Abigail. Mas com o tempo a preocupação deu lugar ao receio. Achavam que Abigail estava ficando louca, e comentavam isso. Comentavam a ponto da própria Abigail ouvir.
Já era noite quando Abigail saiu de seu quarto. Todas já estavam adormecidas e não se ouvia nenhum som em todo o orfanato. Abigail perambulava pelos cômodos, e em um deles alguém estava em pé.
- Quem é? – Silêncio. – Responda! – Tremia.
Abigail forçou a visão na penumbra até ter total noção das formas do corpo de Jack.
- Deus... – Sussurrou. – Como entrou aqui?
- Estou em todos os lugares que você estiver. – Falou baixo. Imóvel.
- Vá embora. Você não é meu amigo. Você é um assassino.
- Eu não sou nada.
- Exato. Nada. É isso o que você é. – Não sabia por que continuava falando com ele.
- Eu nem ao menos existo.
- O que? – Confusa.
- Ora. Não percebeu mesmo? Não seja idiota.
- Do que está falando?
- Eu não passo de algo em sua mente.
- Não seja ridículo.
- Ridículo? Por que me chamo Jack? Talvez seja por que você ouviu uma história sobre um homem com esse nome? Por que me visto desta forma? Será porque este homem se vestia assim? Por que não tenho passado? Será porque ninguém sabe o passado desse homem?
- Não. Você quer que eu pareça louca. Mas não sou. Você está aí em pé. Seja quem for, mas está aí.
- Eu matei aquelas pessoas, Abigail. Eu as matei. E eu sou você. – Jack pela primeira vez sorria, mas era com puro sadismo.
Então Abigail  estava certa. Jack era um assassino, e pior, estava louco. Tateou perto de si até sua mão encontrar um enfeite de mesa feito de madeira maciça e com toda sua força o lançou contra Jack.
- SUMA DAQUI! – Não esperou resposta e correu para a porta da frente do orfanato.
Queria fugir de lá, mas ao passar pelo pátio tropeçou e bateu a cabeça, caindo desacordada.
Não havia nem ao menos amanhecido ainda quando um tom laranja forte começou a se mostrar no horizonte. Levou bastante tempo para que alguém se desse conta da estranha iluminação e avisasse a policia de que o orfanato de Little Acher estava em chamas.
A correria foi grande até o fogo ser apagado. Após as chamas contidas, policiais e bombeiros remexiam os destroços e constatavam o que muitos já esperavam. Todas as internas e freiras do orfanato estavam carbonizadas. Por que haviam sido acorrentadas as camas, logo todos saberiam. O incêndio havia se iniciado na ala dos dormitórios, e não havia chegado completamente em todo o prédio. A policia logo iniciou vistorias nos destroços. Um oficial chamou seu parceiro para dar uma olhada na sala de descanso do orfanato. Nesta sala, um grande espelho ocupava quase toda a parede, mas estava estilhaçado no centro, e no chão, em meio aos cacos, um pesado enfeite de mesa estava caído.
- Nossa. Alguém não gostava do próprio reflexo. – Comentou o oficial, mudando de sala.
O corpo de Abigail foi achado no pátio, ainda com vida, e levado ao hospital da cidade. Durante dois dias as coisas se acalmaram em Little Acher, mas no terceiro dia o inferno recomeçou, mas desta vez com um desfecho.
Abigail havia retomado a consciência no final daquela tarde. Tudo o que falou foi seu nome, para os policiais que tentavam listar as mortes no orfanato. Não comeu nada, e não queria ver ninguém. A noite passou rápida e a manhã foi tumultuada no hospital de Little Acher, onde ocorreu a última morte.
A Gazetta de Acher publicou uma edição especial do jornal na semana seguinte, revelando todos os fatos da última morte, e os mistérios por trás das anteriores.

“Na noite da última sexta-feira, 31 de Outubro, Abigail Williams, única sobrevivente do incêndio do orfanato, pegou um bisturi e retaliou o corpo da enfermeira que cuidava dela. Não bastasse o assassinato, Abigail ainda usou o sangue da vítima para escrever o nome ‘JACK’, uma centena de vezes, por todas as paredes do quarto hospitalar. Após o crime, Abigail sentou-se em sua cama e assim permaneceu até a descoberta dos fatos.
A polícia investigou a relação de Abigail Williams com as demais vítimas, e para o choque de todos, foram resultados compatíveis. Todos os assassinados, em algum momento, de algum modo, ofenderam e maltrataram a jovem de 20 anos.
Durante o acompanhamento psiquiátrico, Abigail diz não se lembrar de absolutamente nada, e ao se questionar quem é o tal Jack, ela diz se tratar dela mesma, depois afirmando que Jack foi quem matou os moradores de Little Acher e não ela.
Este jornal fez suas pesquisas e descobrimos que Abigail perdeu os pais aos 2 anos de idade, e desde então residia no orfanato da cidade. Posteriormente, na época, descobriu-se que a avó paterna de Abigail fora a responsável pela morte do próprio filho e de sua esposa. Fato curioso e intrigante é que a jovem foi batizada com o mesmo nome de sua tataravó, Abigail Williams, que em 1692 foi a primeira mulher acusada e condenada pela prática de bruxaria, na cidade de Salem.
Entre os pertences da jovem Abigail, foram encontrados livros e revistas sobre a história do lendário assassino Jack, The Ripper.
Somando-se todos os fatos podemos afirmar que Abigail Williams, 20 anos, é a responsável pelos 78 assassinatos ocorridos em Little Acher nos últimos meses. Provada a insanidade da jovem, ela foi recolhida ao presídio estadual para doentes mentais e lá ficará até o fim de seus dias.”

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Nota da Autora: Este conte foi escrito em 2005, quando eu tinha 14 anos, por isto ele possui uma série enoooorme de erros. Poderia tê-lo revisado antes de colocar aqui, mas achei mais sincero mostrar como comecei, e como melhorei aos poucos. Obrigada por ler! ^-^

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