Manuscritos do Silêncio

"O silêncio é capaz de expor um lado da humanidade que nem milhares de palavras seriam capazes de descrever." Sisá Fragoso - Manuscritos do Silêncio

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Regresso ao Inferno


O toque insistente do celular me acordou. Sentei na cama, assustada, suando e ofegando. Pesadelos estranhos me atormentavam vez ou outra. Desta vez podia ver uma fila infinita de pessoas esperando para serem incineradas. Levei alguns segundos para ter certeza de que fora apenas um sonho. O celular continuava a tocar e sem olhar para o aparelho, atendi.
- Hale. – Minha voz saiu fraca pelo sono.
- Não me diga que ainda estava dormindo! – Veio clara e alta a voz de meu parceiro pelo aparelho. – Olha o relógio, Madison.
Atendendo as palavras de Sam virei a cabeça para o despertador que mostrava claramente meu atraso.
- Droga! Droga! Droga! – Saí quase rolando pelo chão do quarto, me enroscando com as cobertas e procurando uma toalha para o banho.
Com minha perfeita hora inteira de atraso, estava certa de ouvir outra bronca e talvez uma suspensão. Quando parei o carro no Departamento de Homicídios de Seattle, Sam já estava bem ao lado, abrindo minha porta.
- Estou curioso, o que faria se eu não tivesse ligado para o seu celular? – Era difícil ver Sam alterado mesmo nas piores situações. Gostava disso nele. – Vamos. Feider está nos esperando.
Harison Feider, nosso superior e um velho cuja esposa o trocou por um playboy. Toda vez que o via, em minha mente aparecia a figura do Senhor Burnes no desenho dos Simpsons.
- Walker. Hale. Estão atrasados. – Feider nem ao menos tirava os olhos da tela de seu computador quando cruzamos a porta de sua sala. – Talvez devesse mandá-los em uma pesquisa sobre a história dos despertadores para ver se aprendem como eles funcionam.
- Desculpe o atraso, senhor. Tive problemas com o carro essa manhã e pedi para a Hale me buscar. – Sam enfiou as mãos no bolso do jeans sem dar muita importância para a reprovação de Feider. – Culpa minha.
Continuei quieta. Era sempre assim. Eu sempre fazendo minhas burradas e Sam sempre me defendendo. Queria me esconder nessas horas.
- Não lhe perguntei coisa alguma, Walker. – O velho jogou uma pasta sobre a mesa, continuando a olhar sua tela. – Vão trabalhar. Quero os dois no local em vinte minutos.
Peguei a pasta e a abri, lendo a linha que indicava o local daquele crime. Suspirei. Feider definitivamente estava tentando dificultar as coisas para nós. Porcaria de hierarquia policial.
- Isto é do outro lado de Seattle. Levaremos mais de vinte minutos. – Tentei argumentar, mesmo sabendo que nada conseguiria.
Alguns segundos se passaram até que Feider recostasse na cadeira de sua sala proporcionando o característico rangido de uma velha cadeira reclinável.
- Ainda estão aqui?
Senti vontade de dar-lhe uma bela resposta, mas Sam já estava segurando meu braço e deixando a sala para trás. No caminho até o carro analisávamos o que estivesse naqueles papéis.
- O que temos? – Perguntei, dando a pasta para Sam. Ele folheou alguns poucos papéis. Sua expressão variando por inúmeras emoções ao mesmo tempo.
- Jeniffer Geller. 25 anos. Encontrada morta no jardim da própria casa por volta das 5:20 desta manhã. – Sam fechou a pasta. – Por enquanto é tudo o que temos.
Entramos em meu carro para manter a história de que Sam havia tido problemas com o dele. Como previ, levamos quase quarenta minutos para chegar até o endereço de Jeniffer Geller. Assim que parei o carro, Sam abriu a porta e saiu, ficando apoiado no carro por alguns segundos, respirando fundo.
- Chegamos rápido. – Falei, observando os policiais e peritos irem e virem do interior da casa.
- Da próxima vez eu dirijo. Melhor chegar tarde do que correr risco de morte.
Ignorei o exagero por parte de meu parceiro e segui o mesmo caminho que o resto dos policiais. Um lençol branco cobria um corpo no jardim e dois legistas analisavam o que estava por baixo. Foi diretamente para eles que me dirigi, já mostrando o distintivo.
- O que houve? – Perguntei sem demora.
- Não sabemos bem como relatar isso... – Um deles dizia, erguendo a parte do lençol que cobria o rosto da mulher.
Sorte não ter tomado café da manhã. Seu rosto parecia congelado naquela expressão de dor e havia dois buracos fundos e negros onde deveriam estar seus olhos.
- Os olhos dela foram arrancados? – Sam chegava ao meu lado, também avaliando a cena.
- Queríamos que fosse fácil assim. – O segundo legista parecia incomodado com a situação. – A melhor forma de dizer isso é que os olhos dela foram carbonizados.
- E qual é a dificuldade? – Meus olhos estavam focados nos buracos enegrecidos, como se algo ali estivesse me atraindo.
- Isso aconteceu de dentro para fora. – Foi tudo que o legista disse antes de se calar.
- O cérebro dela derreteu. – Diante de nossas expressões de incredulidade ele logo se defendeu. – Eu sei. Isso é impossível. Mas é o que aconteceu.
Pelo resto daquele dia ficamos na casa, recolhendo possíveis pistas, falando com vizinhos, analisando o corpo. Já era o fim da tarde quando enfim pudemos ir embora daquele lugar. Jeniffer, pelo que vimos em sua casa, não tinha problemas médicos nem financeiros, se dava bem com os vizinhos e com a família, não tinha namorado. Nada justificava sua morte, muito menos de forma tão anormal.
Sam já estava no carro quando assumi o volante. Seu olhar estava atento a algo um pouco distante e parecia curioso demais com seja lá o que fosse.
- O que foi? – Questionei.
- Quem é aquele homem? – Meu parceiro apontou na direção da faixa amarela que fechava a cena do crime. – Ele esteve exatamente naquele lugar o tempo inteiro. Horas e horas.
Só então reparei no homem alto e magro parado ali. Ele mantinha as mãos nos bolsos de uma calça preta, vestia uma camisa social azul escura e o cabelo era completamente negro. Nada assustador em sua aparência, mas de fato ele não se mexia, e isso era perturbador. Sem darmos mais atenção ao estranho, fomos embora.
Já achávamos o caso de Jeniffer algo impossível de se resolver, mas as coisas só ficaram mais confusas a cada dia. Dois dias depois daquilo fomos chamados ao museu de bonecas de Seattle, onde uma das Guias do local parecia ter sido atacada por um animal feroz. Uma mordida enorme quase transpassava toda sua garganta.
Vistoriamos o museu. Nada fora do lugar, nenhum sinal de luta ou de que ela tivesse tentado fugir. Era como se Rachel Jones houvesse se sentado e oferecido seu pescoço para um tigre.
Pelas quatro semanas que se seguiram, vimos do mais estranho ao impossível. As notícias sobre as mortes se espalhavam na mídia e as pessoas começavam a temer o assassino. Mais três só naquele mês.
Danielle Smith, cozida na piscina da própria casa após a água simplesmente ferver. Sarah Parker, teve o coração arrancado pelas costas. Anne Miller, aberta do umbigo até a garganta, sem coração, fígado e pulmões.
O terror já era absoluto por Seattle. Sam e eu passamos quase o tempo inteiro no Departamento. Analisando o quadro branco onde estavam dispostas, as fotos das vítimas e pequenas anotações.
- Foi ele. Tem que ter sido ele. – Sam havia circulado o homem alto de cabelos negros nas fotos de todos os crimes.
- Pode até ter sido. – Eu não estava assim tão certa. – Ou não. Por que ele voltaria aos locais dos crimes? Seria arriscado demais.
- Olha o que ele fez com essas garotas, Mad. – Meu parceiro apontava para cada uma das garotas nas fotos. – Ele não pode ter a cabeça no lugar. Ele não pensa nos riscos.
- Certo, Sammy. Certo. Mas como ele conseguiu fazer metade disso? A maioria desses crimes aconteceu de uma forma inumana. – Levantei de minha cadeira e fui até a porta. – Vou buscar um café e algo para comer. Trarei para você também.
Sam não respondeu e não esperei resposta. Apenas saí. Estava cansada daquele caso. Queria resolvê-lo logo, prender o maníaco que fazia isso e dar paz para as mulheres de Seattle e também para mim. Perdoem o egoísmo, mas eu queria dormir!
Levei algum tempo para voltar. O café estava lotado apesar da hora, e dirigi devagar. Tentava apenas esfriar um pouco a cabeça antes de voltar para aquela sala fechada cheia de fotos de cadáveres mutilados.
Assim que voltei deixei um saco de papel com bolinhos e café ao lado da porta, voltando a analisar o quadro de evidencias.
- Algum avanço? – Perguntei.
- Nada. Nem ao menos consigo ligar um crime à outro. – Sam respirou fundo e esfregou os olhos. – Preferimos acreditar que seja um assassino em série do que uma gangue de assassinos.
O som do saco de papel sendo aberto chamou nossa atenção. Imediatamente me virei para a porta e Sam ficou em pé. O homem alto que aparecia nas fotos estava calmamente sentado comendo um dos bolinhos.
- Sabe, essa comida é realmente boa. – Disse ele, como se fosse perfeitamente normal invadir o departamento de homicídios para comer bolinhos.
- Como entrou aqui? – Estava assustada. – Tranquei a porta principal quando entrei. Quem é você?
Estava com a mão na cintura, pronta para puxar minha arma se necessário. Sam fazia o mesmo. O invasor parecia nos ignorar e continuava a comer.
- Como entrou aqui? – Sam agora estava impaciente, algo raro de acontecer. – Você matou aquelas mulheres. Como?
Aquele homem continuou sentado onde estava, calmo com o nervosismo de nossa parte. Sam queria respostas e as teria, mesmo que a força.
- Responda ou atiro em você!
- Atire se quiser. – Disse ele, abrindo os braços e se expondo à mira da arma. – Não acontecerá nada.
- Você é louco. – Sussurrei diante da idéia de que um tiro direto não faria nada em alguém.
Ele continuava sentado quando puxou uma faca e nos fez ainda mais alerta aos seus movimentos. A lâmina deslizou pelo próprio braço gerando um corte fundo e longo que, para o nosso choque, começou a cicatrizar em uma velocidade enorme.
- O que é você? – Sussurrei.
- Um demônio. – Ele foi direto. Levantou-se e começou a analisar o quadro branco onde estavam as fotos e anotações. – Olha, vamos pular a parte em que vocês defendem a teoria de que só existem humanos neste mundo. Demônios existem. Bruxas. Vampiros. Metamorfos. Tudo isso.
- São histórias inventadas. – Falei. – Nada disso é real.
- Certo. Como se os humanos tivessem a capacidade de criar criaturas como nós. – Quando ele olhou em minha direção seus olhos mudaram de negro para vermelho vivo, me fazendo recuar. – Vamos ao que interessa. Estas mortes.
- Você fez isso. – Sam acusou sem medo. – Qual é o seu nome?
O demônio pareceu sumir no ar até ressurgir ao lado de Sam passando o braço por seus ombros.
- Você quer saber sobre mim ou sobre as mortes? – Antes que Sam pudesse responder o demônio continuou. – Pois bem. Contarei minha história.
Novamente ele sumiu antes de reaparecer na mesma cadeira de antes. O invasor se recostou na cadeira e cruzou os braços começando a falar sobre si mesmo.
- Meu nome é Beliel. Sou o filho do Rei do Inferno.
- Beliel? – Sam segurou o riso.
- Você é filho de Lúcifer? – Estava chocada.
- Fala sério... – Beliel parecia olhar para mim com certa surpresa. – Por onde começar? Lúcifer não é o Rei do Inferno, ele apenas coordena as coisas por lá. Lúcifer é como um gerente e meu pai o dono. Compreendem?
- Não muito... – Fui sincera.
- Entendo. Os humanos distorceram muitas (ou todas) as coisas que deveriam saber sobre o lado sobrenatural de suas existências. Continuando... – Beliel pensou um pouco, respirou fundo e voltou a falar. – Sou o filho mais velho e tenho uma irmã mais nova. Há alguns anos houve uma rebelião no Inferno e para protegê-la nosso pai a arrastou para o mundo dos humanos.
- Protegê-la? – Sam intervinha no relato do demônio. – Não sabia que demônios se importavam uns com os outros.
- Não entenda errado. Tenho metade do poder de meu pai, e minha irmã a outra metade. Se ela acabasse morta, eu seria um alvo fácil. – Beliel voltou para perto dos bolinhos, pegando o terceiro e começando a comê-lo. – Se isso acontecesse, Lúcifer poderia tomar o poder do Inferno. Meu pai não queria isso. Assim mantemos as coisas em família. Os humanos chamam isso de Monarquia, acho.
- Isso parece ter muitas regras. Sempre achei que o Inferno fosse só uma bagunça quente. – Meu parceiro sentou-se mas não tirou a mão da arma. – O que mais tem por lá? Parlamento?
- Podemos discutir milênios da política do Inferno quando quiser, Sammy. – Beliel estava completamente relaxado. Era como se todos fossemos velhos amigos. Ele mastigou mais um pedaço do bolinho e apontou para o quadro branco. – Porém, vim por causa disso. É um ótimo trabalho.
- Seu trabalho. – Acusei.
- Oh. Não, não. – Mordeu mais um pedaço do doce e falava com a boca cheia. – Isso é trabalho de um profissional, mas não meu. Vim parabenizar você.
- O que? – Minha voz saiu mais alta do que gostaria. – Pare de dizer bobagens! Lógico que não matei ninguém.
Beliel riu, realmente se divertindo com minha reação. Ele largou o papel do bolinho sobre a mesa e levantou-se.
- Você não se lembra? – Ele se aproximou de mim e Sam o colocou na mira da arma. – Foi tudo você. Cada uma destas mortes.
Beliel estava agora muito mais perto, apoiando ambas as mãos em meus ombros. Não conseguia me mover. Tudo o que ele dizia era mentira, mas uma voz dentro de mim parecia pedir que eu acreditasse. A voz de Sam estava longe, pedindo que o demônio se afastasse de mim. O som extremamente alto de um tiro disparado em uma sala fechada me trouxe de volta. Baixei os olhos para a mancha de sangue que se formava na lateral da camisa do demônio.
- O que eu deveria dizer agora? Ai? – Beliel havia me soltado se mantendo perto. Respirava fundo e puxava o projétil para fora no furo entre as próprias costelas. Jogou o pedaço de ferro distorcido sobre a mesa na frente de Sam. – Isso é seu. Agora vai largar essa droga de arma?
Eu estava em choque. Sam vacilou e a arma caiu no chão o deixando de guarda baixa. O demônio foi até a mesa e pegou um marcador, voltando ao quadro.
- Vamos brincar. – Beliel desenhou seis traços horizontais e um grande vertical. Um infantil jogo de forca. Preencheu o primeiro traço com a letra A e o último com a letra S por fim estendendo o marcador em minha direção. – Complete isso para mim.
Hesitante peguei o marcador e fiquei observando os espaços vazios. Por que eu fazia o que Beliel pedia? Não tinha como saber o que ele esperava que estivesse escrito ali.
- Madison... – Ouvi a voz de Sam atrás de mim, preocupada e baixa.
Havia outra voz. Dentro de minha mente era como se alguém falasse comigo. Soletrasse. Estiquei a mão e preenchi os espaços com as letras que me vinham ao pensamento. G. A. R. E. Soltei o marcador no chão e dei dois passos para trás.
- Perfeito. – Beliel sorria.
- O que? O que é perfeito? O que é isto? – Começava a me sentir assustada por ter preenchido aquilo com as letras que o demônio esperava.
- Agares. – Sam leu e por algum motivo me virei para ele. Da mesma forma que alguém se vira ao ouvir o próprio nome ser chamado.
Por um breve instante vi os olhos de Sam se arregalarem e não tive tempo de me virar e desviar da faca que Beliel cravava em meu estomago. Senti dor. Sangue manchava minhas mãos e escorria por minha boca. Começava a ter frio. Meu corpo caiu para trás. Estava morrendo.
Com a visão turva podia ver Sam correndo para perto e Beliel apenas parado observando. Já não conseguia distinguir sons. Fechei os olhos e me deixei levar. O demônio havia me matado e Sam seria o próximo.

Não sei por quanto tempo estive daquela forma até que a faca fosse retirada de meu estomago. Pouco a pouco os sons voltavam ao volume normal. Como isso podia acontecer? Algo estava errado em mim. Não me sentia eu mesma.
- Levante-se. – A voz de Beliel veio imperativa.
Abri os olhos e a luminária incomodou minha visão. Claro demais. Respirei fundo e fiquei sentada. Meus dedos tateavam a ferida ainda aberta que começava a fechar. Olhei para Sam e tudo o que encontrei foi surpresa, choque e medo em seus olhos. Meu parceiro tremia. Esbocei um leve sorriso ficando em pé.
- A próxima vez que me esfaquear eu degolo você. – Minha voz soou baixa e estranha aos meus ouvidos. As palavras também eram diferentes.
- Sammy... – Beliel falava alto com certa empolgação. – Conheça minha irmã mais nova, a Princesa do Inferno, Agares!
- Ma... Madison... – Ele gaguejou se colando à parede mais afastada o possível. – O que aconteceu com seus olhos? Estão vermelhos. Como você se levantou?
Por alguns segundos apenas observei o humano assustado. Uma minúscula parte de mim se doía por ele, mas a parte dominante não se importava muito. Sorri, aproveitando o medo e a confusão que emanavam de Sam.
- Nunca gostei desse nome, sabia? Madison. – Ri ao som do nome. – Oh, Sammy. Relaxe. Se tivesse a vontade de matar você, teria feito isso anos antes. Agora... Beliel é uma outra história.
Meu irmão cruzou os braços oferecendo um olhar superior. Ignorei sua expressão de ameaça e aproveitei o conforto da cadeira mais próxima a mim. Enrolava uma mecha de cabelo nos dedos enquanto analisava as fotos no quadro.
- Tive que mutilar humanos para que você viesse atrás de mim? Está perdendo o jeito, irmão. – Um riso sádico escapou por minha garganta.
- Apagamos sua memória e bloqueamos seus poderes. Jamais achei que houvesse preocupações.
Beliel estava perdendo a paciência muito rápido e eu estava adorando isso. É da natureza dos demônios sermos dissimulados e irônicos. Alguns de nós tentam viver entre os humanos como se fossem um deles, mas a maioria via a vida humana como almoço. Eu via com indiferença.
- O que vocês conseguiram foi me arrumar uma dupla-personalidade, seu imbecil. – Levantei de onde estava e me aproximei de meu irmão. Beliel era uma ameaça para qualquer outro Ser no Inferno ou na Terra, mas para mim era um reflexo masculino. – Tem idéia do que é passar duas décadas enterrada no fundo de uma mente que acredita ser humana? Queria vomitar a cada refeição humana. Queria comer a cada cena de crime. Queria retalhar a cada repreensão do chefe de polícia.
- Como se manifestou? – Beliel não estava nem um pouco interessado no porque, apenas queria saber como.
- Levei anos cavando a parede mental que bloqueava a minha existência. Ainda sim estava fraca para voltar ao Inferno. – Dei as costas para meu irmão e fui até o quadro branco, arrancando fotos e atirando pelos ares. – Tive de caçar como uma Besta para conseguir a atenção do Príncipe.
- Foi mesmo você... – A voz de Sam veio fraca e distorcida. Já havia até esquecido-me do humano.
- Ora, Samuel. Nunca existiu a doce e ingênua Madison. Era apenas um papel que eu estava sendo forçada a interpretar todo maldito dia. – Minha raiva aumentava e isso era perigoso. – Não importa o quanto de compaixão que eles dêem... Humanos ainda não valem nada.
- Como... Como as matou? – Ele tremia.
- Não vejo necessidade desta pergunta. Os legistas já lhe deram tudo. – Cruzei os braços, arqueando uma das sobrancelhas. – Fritei o cérebro de Jennifer e seus olhos. Rachel foi um lanche apenas. Estava com fome. Danielle... Apenas esquentei um pouco a piscina. Arranquei o coração de Sarah. Anne foi meu jantar naquele dia. Seu coração e fígado estavam ótimos, mas tive que desistir dos pulmões. Ela era fumante, sabe?
Impossível conter o riso que veio logo após a piada macabra. Sam, por outro lado, ficava mais pálido a cada morte que eu lembrava. Não foi surpresa quando ele desmaiou atrás da mesa.
- Humanos... – Suspirei. – Bem, por que não veio atrás de mim antes? Sabia o que eu estava fazendo.
Meu irmão calmamente se sentou e revirou o saco de bolinhos, reclamando por não encontrar mais nenhum. Recostou na cadeira e cruzou os braços.
- Você sabe muito bem que mortes violentas sempre jogam as almas no Inferno. – Beliel jogou as mãos para cima. – Por que eu pararia sua caçada se o Inferno estava lucrando com isso?
- Mas parou agora.
Beliel estalou os dedos e sorriu em uma demonstração sem palavras de que eu estava certa em algo.
- Apenas me fiz presente, irmãzinha. Se quiser continuar com sua caçada... Fique a vontade. O Inferno agradece. Quanto mais almas tivermos por lá, mais divertido será torturá-las. – Meu irmão destampou um dos copos de café e bebeu um gole. – Por que os humanos bebem isso? É horrível.
- Não mude de assunto, Beliel. Se estava satisfeito com minha matança não teria porque vir até mim. Podia apenas ter fingido não saber. – Conhecia meu irmão o suficiente para saber que tinha algo por trás disto. Não prezamos a ideologia de laços familiares e sangue do meu sangue. Beliel já teria me matado se não precisasse de mim, e eu com certeza faria o mesmo.
Para um demônio só importa a própria vida. Humanos não passam de distração e comida, e outros demônios são apenas cartas dispensáveis em um baralho velho. Para um demônio a única coisa que tem valor, é a própria vida.
- Você precisa voltar para o Inferno. – Ri diante da confirmação de meus pensamentos. Beliel continuou. – Lúcifer está tentando dominar o Inferno. Sem você lá, tenho apenas metade do meu poder. Não estou muito a fim de deixar meu império de morte e agonia nas mãos de um anjo caído.
Olhei em volta por alguns segundos. Estava entediada. O mundo dos humanos era uma droga onde as pessoas agiam com falsidade e sorrisos forçados para agradar outras pessoas que faziam exatamente o mesmo.
- Saia e traga uma mulher com minha altura e meu tipo físico. – Foi tudo o que disse.
Beliel tinha milênios de experiência em saber que não adiantava discutir comigo ou perguntar os porquês de meus planos. Em um segundo meu irmão estava ali, no outro já havia desaparecido.
Com poucos minutos meu irmão estava de volta com uma mulher magra de longos cabelos castanhos. Beliel quebrou o pescoço da jovem para que morresse, o que provava que ele já fazia alguma idéia de meus planos.
Pedi que carregasse Sam para fora, afinal, mesmo que o humano não tivesse grande valor, era fato que durante anos ele protegeu minha vida como humana. Contra vontade Beliel o arrastou pelos corredores.
Mais uma vez corri os olhos pelos inúmeros documentos, fotos e provas do caso que eu mesma havia iniciado e investigava sem lembrar de nada. Abaixei ao lado da garota morta e meus dedos tocaram seu cabelo que logo se incendiou. O fogo correu de forma anormal tomando todo o corpo da jovem. Assisti ela ser lentamente carbonizada.
Caminhei pela sala tocando papéis e pastas. Por onde meus dedos passavam o fogo começava. O fogo fazia parte de mim. Assim como o Inferno queima, os Príncipes dominam as chamas. Não sentia o calor, mas em poucos minutos toda aquela sala estava em chamas. Fui para os corredores, outras salas, recepção, sala de espera... Cada cômodo do Departamento de Homicídios de Seattle recebeu meu toque. Quando cheguei até a porta da frente, todo o prédio ardia e estalava com o fogo. Vidros estouravam com a pressão e vigas de madeira do teto cediam partes do concreto.
Do lado de fora, Beliel havia largado Sam no chão e assistia ao incêndio de braços cruzados. Peguei o celular e disquei o número de emergência passando o aparelho para meu irmão. Beliel fingiu uma tosse perfeita e um desespero teatral ao informar que era funcionário do Departamento e que o prédio estava em chamas.
Nos afastamos um pouco do local, apenas o suficiente para não sermos vistos mas vigiarmos a movimentação. Quando os bombeiros e a polícia chegaram, Sam começava a acordar e ficava desnorteado com a bagunça. Médicos e enfermeiros corriam até ele prendendo ao seu rosto a máscara de oxigênio. Faziam perguntas que eles mesmos respondiam. “O senhor ligou para a emergência? Claro que foi. Fique calmo.”
Sam foi colocado em uma ambulância afastada do incêndio. Os bombeiros combatiam as chamas com todas as forças, mas algo sobrenatural parecia mantê-las constante. Difícil disfarçar meu sorriso de orgulho. Assim que os médicos se afastaram de Sam, nós nos aproximamos.
- Samuel. – Ele abriu os olhos e se encolheu. Continuei sem dar importância. – Estamos quites. Por vários anos você cuidou de meu lado humano, e agora poupei sua vida no incêndio. Porém, entenda bem o que vou dizer. Encontrarão um corpo dentro do prédio. Dada a carbonização quase total, será impossível fazer testes que identifiquem o corpo. Você dirá que sou eu, e que não sabe como o incêndio começou.
O humano mantinha os olhos arregalados e balançava a cabeça em confirmação a cada frase minha. Acredito que Sam concordasse com tudo que me tirasse de perto dele, nessa altura da situação.
- Nunca, por nenhum motivo, conte sobre quem nós somos e de onde viemos. – Meus olhos reluziram o vermelho vivo assim como os de Beliel, ameaçadores. – Do contrário, sua vida acabará e sua alma será levada ao Inferno. Eu mesma virei arrancar seus órgãos caso descumpra esta ordem.
- Aproveite bem essa chance, Sammy. – A voz de Beliel era um sussurro arrepiante.
- Adeus, Samuel Walker.
Dei as costas ao humano. Aquela minúscula parte em minha mente chorava, mas foi extremamente fácil bloqueá-la. Isso destruiu qualquer fragmento de humanidade que ainda estivesse em minha mente. Nos afastamos poucos passos, e mais alguns passos depois já não havia mais sinal de nossa presença.
Com o passar dos dias Seattle voltou ao ritmo normal. Mais nenhuma morte como aquelas aconteceu, e a população deixou de pensar nisto. Na polícia, lamentavam a trágica morte de uma Investigadora tão competente. Os restos carbonizados da garota sem nome foram colocados sob a lápide de Madison Hale no cemitério local.
O incêndio no Departamento de Homicídios destruiu os documentos e provas de uma centena de casos ainda não resolvidos. Para mim isso pouco importava. Assassinos e ladrões continuariam soltos, matando e jogando almas ao Inferno.
O mundo dos humanos ficou para trás e agora o Inferno voltava a ser meu lar. O começo foi difícil, muitos duvidavam do regresso da Princesa, mas com o tempo minha presença se tornou evidente. Com a permanência de ambos os Príncipes, Lúcifer parecia desistir do plano suicida de dominar nosso império, e continuava sendo apenas o gerente. Beliel era o responsável por punir os demônios que descumpriam as ordens de Lúcifer, e eu a responsável por vigiar as torturas eternas dos humanos condenados ao Inferno. Poucos dias deste trabalho foram o suficiente para apagar definitivamente Madison Hale de minha alma. Agora era apenas Agares, a Princesa do Inferno.
Jamais voltei ao mundo dos humanos e nem senti vontade de fazer isto. Um mundo deplorável de pessoas falsas que acreditam acima de tudo que são as criaturas mais importantes e mais capazes do universo. Nojento. O que aconteceu com Sam? Ora, por que eu deveria saber? Se não dou qualquer valor para a raça humana, que dirá um único humano descartável. Se com o passar dos anos ele veio a morrer, não caiu nos campos do Inferno, infelizmente.
Os humanos acreditam cegamente que uma boa ação poderá apagar uma vida de pecados, e ignoram a perfeita chance de pagar eternamente por um erro. Você acredita no que vê, ou vê apenas o que acredita? Nada garante que a verdade seja só aquilo que você consegue ver. Não viva crendo que apesar de tudo o que fizer, um Deus misericordioso com certeza perdoará sua alma. Lembre-se que nós também estamos esperando. Se o Bem vale uma vida, o Mal também vale uma vida. Isso faz parte vida... Ou da morte... Ou de nossa própria existência. Para que ter pressa se o destino inevitável é uma caminhada para a morte? Faça valer a pena. Siga com calma e aproveite seus dias, afinal, qualquer coisa... Qualquer um... Qualquer lugar... Um dia termina.
- FIM -

Nenhum comentário:

Postar um comentário