Manuscritos do Silêncio

"O silêncio é capaz de expor um lado da humanidade que nem milhares de palavras seriam capazes de descrever." Sisá Fragoso - Manuscritos do Silêncio

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Infiltrado



Lá estava eu, em minha cama, deitado no escuro, olhando o ventilador girar preguiçoso no teto. Uma carta simples estava jogada no chão, ao lado da cama. Nela poucas palavras, mas que agora começavam a me irritar. “Eu te perdôo”.
Meus pais morreram quando eu tinha 5 anos, depois morei com meu irmão mais velho na casa de uma tia em Campinas. Quatorze anos depois meu irmão estava casado e morando em outra cidade. Nossa tia havia falecido pela idade e eu me virava sozinho em um apartamento no centro de São Paulo.
Aos meus 23 anos tinha uma vida normal. Havia me formado em Direito em uma universidade de renome há cerca de onze meses, mas desde os 16 anos atuava na Força Tarefa de Infiltrados da Policia. Não tinha um grande salário, mas podia me manter em um apartamento médio sem grandes gastos. O que jamais entendi foi o fato de ser um péssimo exemplo incorrigível e ainda assim as pessoas se atraírem para perto de mim. Considero isso uma grande idiotice.
- Idiota... – Minha voz sussurrada pareceu alta no silêncio do quarto escuro. Aquela carta estava penetrando como uma bala as muralhas que eu passei a vida construindo em torno de mim mesmo. Eu não gostava de ninguém do lado de dentro.
Fechei os olhos e suspirei, levando minha mente para dois meses antes. Para as lembranças às quais aquela carta se referia, de uma forma irritante e subliminar.
O carro preto parou a um quarteirão de distância. De lá podíamos ver as pessoas que entravam e saíam do Castelinho. Hoje o lugar era dominado por grupos góticos de viciados em drogas que se sentiam atraídos pela atmosfera bizarra. A porta do motorista se abriu e um par de belas pernas se projetou para fora. Do lado do passageiro, minhas pernas envoltas no jeans escuro.
- Tem certeza disso? – Questionou a voz feminina e suave de minha superiora.
A fumaça vinda de meus lábios rodopiou. Eu não tinha nada para dizer. Meus dedos atiraram o cigarro ao chão e meu tênis cuidou de apagar a brasa. Enfiei as mãos nos bolsos e comecei a andar na direção de minha nova missão.
- Kauê! – Ela chamou. Eu parei de andar, apenas esperando que ela continuasse suas palavras. - Não faça amigos aqui. Se confiar demais pode por em risco a operação. – Sua preocupação com a minha vida era notável, se me permite o sarcasmo.
Virei apenas o rosto, olhando-a por sobre o ombro. Diziam que meus olhos eram frios e ameaçadores e eu até gostava da classificação.
- Eu não confio em nada que seja capaz de pensar. – Ignorei qualquer outra palavra de minha superiora. Odiava ser subestimado daquela forma. Voltei a andar até desaparecer entre as pessoas no Castelinho.
Enquanto eu caminhava para a entrada, repassava os fatos de meu novo caso. Alguém estava chefiando uma rede de tráfico de drogas naquele lugar. Era o que tínhamos, mas eu suspeitava de contrabando de armas ou qualquer coisa a mais. Tinha experiência o suficiente para saber que um crime nunca vem sozinho.
Adentrei o Castelinho já sabendo o que esperar e nada ali me chocou. Nem a escuridão dos cantos. Nem o centro iluminado por luzes vermelhas. Nem os corpos largados pelo chão ou dançando sem qualquer ritmo na música alta. Um garoto que não teria mais de 15 anos me ofereceu um cigarro de maconha. Disse que aceitava e assim que ele se afastou eu troquei a droga por um de meus próprios cigarros. Não que a nicotina fosse benéfica, isso eu bem sabia (e meu pulmão também), mas ao menos mantinha a minha consciência onde deveria estar.
Andei pelo lugar, tentando não chamar a atenção. Escolhi um canto mais vazio e deixei meu corpo cair, fazendo crer que eu estava fora de meu equilíbrio normal. Deixei os joelhos dobrados, apoiando os braços neles. Pendi a cabeça para trás até encontrar a parede e fiquei observando. Não demorou mais que dez minutos para uma garota surgir do nada e começar a se esfregar em mim como um cão no cio. Era magra, bem mais baixa que eu, seu cabelos eram ruivos e compridos, provavelmente tingidos até aquele tom de sangue. Eu não via seus olhos, mas suas curvas chamavam atenção.
- Que merda está fazendo? – Falei com rispidez ao afastar a garota.
- Você parece sozinho. – Respondeu a ruiva com uma voz rouca, novamente vindo pra cima de mim, dessa vez bagunçando meu cabelo com os dedos. – Eu amo loiros. Você é bonito.
Por um momento pensei em novamente afastá-la e sair dali, procurar outro canto para observar, mas decidi agir de outra forma. Entreguei-me aos toques da ruiva. Deixei que ela se grudasse ao meu corpo e não resisti quando ela me beijou, embora tenha feito um notável esforço em ignorar o gosto de maconha que impregnava seu hálito. Ela logo se sentiu confortável com a liberdade que eu estava dando e partiu para o próximo nível. Como Agente não sei o que pensar, mas como homem afirmo que a melhor invenção da humanidade foram as minissaias. A ação foi rápida e meu êxtase involuntário, mas ela enfim estava ofegante, abraçada a mim.
- Seu nome? – Tentei parecer interessado.
- Andressa. – Ela falou cada sílaba de forma pausada, sussurrando bem perto de meu ouvido.
Simulei uma conversa casual e obtive informações relevantes. Andressa tinha 18 anos e freqüentava o Castelinho há três. Ali acontecia de tudo. A conversa continuou até de manhã. Inventei qualquer desculpa e saí do lugar. No caminho para casa fiz um relatório por telefone à minha superiora. Em casa, dormi no sofá com a mesma roupa que estava.
Na noite seguinte voltei ao lugar. Dessa vez Andressa me encheu de perguntas. Em algumas fui sincero. Ela sabia meu nome, minha idade, que era órfão e que tinha um irmão. Achava que eu morava em um abrigo, que era viciado em maconha e que estava apaixonado por ela. Verdades e mentiras.
Estávamos no meio da noite quando três caras me puxaram e senti minhas costas baterem com violência na parede. Um deles dizia que “O Chefe” queria conversar comigo. Fomos levados por uma porta ao fundo da improvisada pista de dança e logo empurrados para o chão. Em um confortável sofá um homem estava sentado, rodeado por duas mulheres praticamente nuas. A conversa foi longa, mas em resumo minha vida foi ameaçada. Ali também funcionava uma rede de prostituição e Andressa era a preferida do chefe.
- Se quer brincar com ela, pague por isso! – Dizia o homem que se apresentou como Vinicius.
Revistaram meus bolsos e fizeram perguntas. Mantive minha história já contada à ruiva.
- Se é assim tão desgraçado, como usa cigarros importados? – Um segurança me questionava, cheirando o maço tirado de meu bolso.
- E o que te faz pensar que eu paguei por isso? – Respondi com frieza.
Tendo certeza que não estava armado, nem possuía uma escuta, nem qualquer identificação de que eu seria uma ameaça para a organização, eles me soltaram. Estava orgulhoso de minha capacidade de infiltração e aceitei de bom grado a garrafa de vodka ainda lacrada. Como disse, não sou nenhum tipo de exemplo. Rompi o lacre da garrafa e virei um gole profundo da bebida. Levou menos de cinco minutos para que o mundo girasse. Meu coração disparou quase imediatamente. Minha cabeça latejava e eu sentia uma vontade de por meu jantar para fora. Cai de joelhos. Senti meu corpo dar sinais de tremedeira. Mãos fortes me seguraram e fui jogado para fora do Castelinho. Com extrema dificuldade puxei meu celular do bolso e apertei o botão da ligação de emergência. Logo eu estava inconsciente.
Acordei no hospital. Uma máscara de oxigênio estava em meu rosto. Ao meu lado minha superiora estava em pé. Relatou que eu estava inconsciente há três dias e que durante esse período uma menina ruiva vinha saber de meu estado. Sentei na cama sob protestos e arranquei todos aqueles fios e cabos de mim. Meus olhos pesavam e eu apoiei a cabeça nas mãos.
- Êxtase. – Minha voz mal saiu. – Eles devem agir com contrabando de bebidas também. A garrafa estava lacrada. – Eu me justificava.
- O que eu preferia saber é por que você estava bebendo em serviço. – A voz de Ângela, minha superiora, era dura.
Não continuei a discussão. Eu tinha tudo o que precisava para concluir o caso, e só isso me importava. Meus olhos viram a moça ruiva encolhida na porta do quarto. Andressa trazia uma cesta com frutas e se dispôs a cortá-las para mim. Eu me mantive quieto, distante. A garota disse que depois do meu sumiço ficou assustada e estava procurando uma forma de se afastar das drogas, mas sozinha não tinha forças. De cada dez palavras que dizia, eu ouvia menos de cinco. Minha mente estava ocupada em formular a operação. Ao final do dia já tinha saído do hospital e despistado Andressa. Passei meus planos para o resto da equipe em reunião no 8º andar do Palácio da Polícia, no centro da cidade. Tudo foi armado.
Passava de onze da noite quando os carros cercaram os quarteirões em torno do Castelinho. Dúzias de policiais fardados de negro se moviam abaixados pela rua. A investida foi rápida. Eu mesmo estava na linha de frente, com arma em punho e o cigarro no canto da boca. A maioria logo se jogou no chão se rendendo. Apenas os de cargo mais alto começaram um revide de tiros. A correria foi enorme e os que saiam do prédio eram segurados pela guarda montada do lado de fora. Meus olhos encontraram o homem que havia me levado para aquela armadilha de êxtase. Mauro, o irmão e braço direito de Vinicius, foi minha única vítima naquela noite. Minha paciência já tinha se esgotado e o tiro vindo de minha arma me trouxe alivio.
A operação levou uma hora. Rápida para o que estamos acostumados. Do lado de fora fazíamos a triagem em três grupos. As vítimas fatais eram levadas para o IML. Os chefes do bando eram levados para os camburões. Vinicius me olhava com ódio profundo enquanto um policial o arrastava à força para o carro. Eu havia matado seu irmão e destruído sua quadrilha. Compreensível. O terceiro grupo, esse em maior quantidade, eram os viciados que nada de mal haviam feito além de se destruir. Eles estavam sendo colocados em diversos carros e levados para centros de reabilitação.
- Eu confiei em você! – Ela gritou e eu me virei para ver Andressa ser carregada para um dos carros. Ela esperneava e chorava, olhando em minha direção. Sim, ela confiou em mim, e eu a usei desde o primeiro instante. Agora ela estava sendo levada a um centro de viciados. Ela confiou em mim.
- E esse foi o seu erro. – Sussurrei, vendo o carro se afastar, levando a ruiva para longe. Não importava. Eu só queria ir pra casa, tomar banho e dormir.
Dois meses se passaram e eu não perdi um minuto de meus dias para relembrar a operação do Castelinho. Foi quando aquela maldita carta chegou para devastar meu mundo. Pessoas internadas em centros de reabilitação muitas vezes progridem e podem sair, se supervisionadas por alguém que não use drogas. É como pagar fiança. Você vai, reconhece sua Pessoa-Problema e volta pra casa com ela.
Meus dedos deslizaram pela cama até encontrar o celular. Apertei a discagem automática e fiquei ouvindo.
- Damasceno. – Atendeu a voz de Ângela.
- Faça-me um favor. Peça a liberação de uma paciente do Centro de Reabilitação. Andressa é o nome. Diga que estou indo buscá-la. – Desliguei sem esperar qualquer resposta.
Eu me questionava que droga de sentimento era aquele. Respirei fundo e me levantei indo buscar a única pessoa que venceu minhas barreiras internas de uma forma que nem eu mesmo pude perceber.

- FIM -

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