Manuscritos do Silêncio

"O silêncio é capaz de expor um lado da humanidade que nem milhares de palavras seriam capazes de descrever." Sisá Fragoso - Manuscritos do Silêncio

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

O outro lado da história: Esperança!



Naquela manhã todo o reino de Millus pode ouvir o trotar acelerado do cavalo negro. Muitos saíram de suas casas imaginando problemas nos portões, mas quando o cavaleiro sumiu na passagem das muralhas todos retornaram à suas vidas normais.
Millus era um reino de porte médio, a vista de todos nas planices oeste do Novo Continente. Uma terra de pacifistas, mas que sabiam como defender seus ideais. Sua rainha há muito havia falecido, o que tornou o Rei um homem de pulso firme e pouca tolerância, um contraste marcante com a Princesa tão meiga e amável.
Quando um ancião trajando um manto marrom subiu a pequena colina à leste dos portões, pode ver o cavalo negro amarrado ao grande carvalho.
- Bons ventos o trazem, cavaleiro. – Disse com ânimo sincero.
- Conselheiro Heder! – O cavaleiro logo se sentou em respeito ao homem mais velho.
Heder era o melhor amigo do Rei, e por conseqüência assumiu o cargo de Conselheiro Real. Querido pelo povo de Millus, o sábio velho já havia visto e ouvido de tudo.
- Fico alegre em vê-lo vivo, jovem Merluz. – Heder aproximou-se do cavalo negro e o acariciou lhe dando iguais boas vindas. – Peço sinceras desculpas por não participar da comemoração de seu retorno, mas estive ocupado. Quando voltou?
Andrew Merluz, um jovem que não vira mais que vinte e três invernos e ostentava aparência bela além de um coração nobre e ideais sonhadores. Seu pai fora o comandante do exército real, e hoje Andrew ocupava tal posto com bons motivos.
- Faz quatro dias. Dispenso seu pedido de desculpas, Conselheiro. Sei que seus afazeres não são poucos.
O jovem calou, não sentindo muita vontade em conversar. Logo pela manhã sua conversa não havia sido amigável com a Princesa. Bom... não haviam tido conversas amigáveis desde seu retorno. Queria apenas pensar um pouco. Respeitava o sábio, mas agora procurava apenas a solidão.
- Sua saída do castelo esta manhã foi ruidosa. Parece-me chateado, jovem Merluz. Gostaria de saber o porque. – Heder ostentava de forma integral o jeito de avô afável, o que fazia com que todos lhe desabafassem.
- Não agüento o comportamento de Salima. – O cavaleiro era alguém fechado demais, e mesmo quando se abria ao conselheiro, mantinha os olhos no horizonte. – Isso não é forma de me tratar.
Salima Millihataway, a Princesa de Millus. Uma jovem de boa aparência e longos cabelos escuros. Desde muito nova obrigada a assumir posturas e afazeres que deveriam ser de alguém muito mais velho. A moça encontrava uma fuga na companhia de Andrew, seu melhor amigo, seu cavaleiro, seu amor.
- Explique melhor. – Pediu o Conselheiro.
- Há semanas estou longe, lutando pelo reino. Uma sorte continuar vivo. Regresso sonhando com a ternura e sorrisos da mulher que amo, e encontro apenas um bloco de gelo que vê falhas em tudo o que faço ou digo. – Os dedos do cavaleiro bagunçaram o próprio cabelo e ele apertou os olhos. – Ela não devia me tratar desta forma. Vi coisas horríveis em batalha, companheiros mortos... Salima deveria me receber com uma amabilidade sem igual. Essa já não é a mulher por quem me apaixonei.
O silêncio reinou por alguns segundos que pareceram horas. O vento soprou na colina e a voz do Conselheiro veio ligeiramente menos gentil.
- Nunca me pareceu um rapaz egoísta, jovem Merluz.
- Que disse? – Andrew logo assumiu uma postura agressiva perante o ancião.
- Compreendo todos seus motivos para desejar os braços da mulher amada a cuidar de seus ferimentos, mas você vê apenas as coisas pelo seu lado. Esteve longe de Millus por muito tempo, cavaleiro. Aqui aconteceram muitas coisas. Salima foi forçada a tomar decisões e demonstrar uma sabedoria muito além de sua idade. Isso mexe com as pessoas. Se busca alívio para os seus ferimentos, deveria também enxergar os dela.
Andrew refletiu sobre as palavras de Heder. Algo em seus olhos parecia mudar. O cavaleiro não estava mais irritado com as atitudes de sua Princesa, mas a mágoa pelos últimos dias iria durar ainda muito tempo.
O cavaleiro levantou-se em silêncio e começou a desfazer o nó que prendia a cela de seu cavalo à árvore.
- Salima mudou. Já não há forma de trazer minha alegre e amável Princesa de volta. Apenas resta a Dama de Gelo e eu só lamento.
- Ora, não sabia que minha Princesa havia falecido. – O tom brincalhão voltava à voz de Heder, embora o assunto continuasse sério.
- Do que está falando?
- Você fala como se Salima estivesse morta e outra mulher houvesse tomado seu lugar. Você desiste da mulher que ama sem pensar no que ela passou em sua ausência nem em quantas noites ela esteve em claro olhando o horizonte à espera de seu retorno para ampará-la nas horas mais difíceis. – Heder cruzou os braços sob o manto e encarou o horizonte. – Situações inevitáveis da vida forçaram a Princesa a construir um muro impenetrável em torno de si mesma. Um muro que ninguém jamais conseguiria ultrapassar. Salima sofreu demais por toda a vida e esta foi à única forma que ela encontrou para evitar ser completamente destruída. Esta tática de auto-sobrevivencia não te lembra alguém, jovem Merluz?
O cavaleiro se calou diante da indireta. O Conselheiro sorriu com sua razão e continuou a falar.
- Sua Princesa está dentro desta muralha, Cavaleiro. E a “Dama de Gelo” é apenas a sentinela dos portões. Salima, como a conhecíamos, não deixou de existir. Ela apenas está perdida dentro de si mesma. Se a considerar morta e aceitarmos esta Dama de Gelo, então ela estará mesmo morta. “Não há forma de trazer minha Princesa de volta”. Há, jovem Merluz, mas você terá de se esforçar, escalar a muralha, ou talvez quebrá-la por inteiro, arrumar uma forma de resgatar a Salima que está perdida ali.
- Não sei se posso... – Andrew sussurrava com os olhos confusos.
- Se justo você, o Cavaleiro Negro de Millus, desiste de procurar a Princesa dentro dela mesma... Então é o Reino quem lamenta.
Heder esboçou um triste sorriso e deu as costas ao cavaleiro, começando a caminhar rumo aos portões de Millus. A voz de Andrew o fez parar.
- O que devo fazer?
- Salima não morreu, jovem Merluz. Não desista dela. – O Conselheiro sorria com gentileza. – Se ela mudou em sua ausência, sua presença a mudará novamente. Tenha esperança, cavaleiro.
Quando o Conselheiro voltou a caminhar, Andrew não o deteve. Começava a entender as palavras do ancião. A princesa era a mesma, apenas de uma forma diferente, e não uma outra pessoa. Se Salima se fechou do mundo com medo de cair, ele venceria as defesas daquela muralha de gelo e diria para sua alegre Princesa que ela nada teria a temer com ele ali.
Andrew jurou, anos antes, durante sua ordenação, que como Cavaleiro Real, faria tudo o que fosse possível pela segurança da família real, e jurou em segredo para sua Princesa, que faria ainda mais para manter o precioso sorriso da mulher amada.
O cavaleiro montou no cavalo negro e correu para o castelo. Havia muito trabalho a ser feito. Ele sabia que nos primeiros dias desta sua nova missão pessoal, a Princesa seria fria e rude, mas pouco a pouco... Bloco após bloco... Ele cruzaria a muralha e chegaria à mulher de sua vida.
Se aquela não era Salima, ele a traria de volta. Aprendeu isso na guerra, mas aplicaria no amor: Mesmo ferido, não abandone seus ideais, lute. Sempre siga em frente, pois mesmo que o mundo caia em trevas, a esperança estará brilhando.

~ FIM ~

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