Manuscritos do Silêncio

"O silêncio é capaz de expor um lado da humanidade que nem milhares de palavras seriam capazes de descrever." Sisá Fragoso - Manuscritos do Silêncio

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Regresso ao Inferno


O toque insistente do celular me acordou. Sentei na cama, assustada, suando e ofegando. Pesadelos estranhos me atormentavam vez ou outra. Desta vez podia ver uma fila infinita de pessoas esperando para serem incineradas. Levei alguns segundos para ter certeza de que fora apenas um sonho. O celular continuava a tocar e sem olhar para o aparelho, atendi.
- Hale. – Minha voz saiu fraca pelo sono.
- Não me diga que ainda estava dormindo! – Veio clara e alta a voz de meu parceiro pelo aparelho. – Olha o relógio, Madison.
Atendendo as palavras de Sam virei a cabeça para o despertador que mostrava claramente meu atraso.
- Droga! Droga! Droga! – Saí quase rolando pelo chão do quarto, me enroscando com as cobertas e procurando uma toalha para o banho.
Com minha perfeita hora inteira de atraso, estava certa de ouvir outra bronca e talvez uma suspensão. Quando parei o carro no Departamento de Homicídios de Seattle, Sam já estava bem ao lado, abrindo minha porta.
- Estou curioso, o que faria se eu não tivesse ligado para o seu celular? – Era difícil ver Sam alterado mesmo nas piores situações. Gostava disso nele. – Vamos. Feider está nos esperando.
Harison Feider, nosso superior e um velho cuja esposa o trocou por um playboy. Toda vez que o via, em minha mente aparecia a figura do Senhor Burnes no desenho dos Simpsons.
- Walker. Hale. Estão atrasados. – Feider nem ao menos tirava os olhos da tela de seu computador quando cruzamos a porta de sua sala. – Talvez devesse mandá-los em uma pesquisa sobre a história dos despertadores para ver se aprendem como eles funcionam.
- Desculpe o atraso, senhor. Tive problemas com o carro essa manhã e pedi para a Hale me buscar. – Sam enfiou as mãos no bolso do jeans sem dar muita importância para a reprovação de Feider. – Culpa minha.
Continuei quieta. Era sempre assim. Eu sempre fazendo minhas burradas e Sam sempre me defendendo. Queria me esconder nessas horas.
- Não lhe perguntei coisa alguma, Walker. – O velho jogou uma pasta sobre a mesa, continuando a olhar sua tela. – Vão trabalhar. Quero os dois no local em vinte minutos.
Peguei a pasta e a abri, lendo a linha que indicava o local daquele crime. Suspirei. Feider definitivamente estava tentando dificultar as coisas para nós. Porcaria de hierarquia policial.
- Isto é do outro lado de Seattle. Levaremos mais de vinte minutos. – Tentei argumentar, mesmo sabendo que nada conseguiria.
Alguns segundos se passaram até que Feider recostasse na cadeira de sua sala proporcionando o característico rangido de uma velha cadeira reclinável.
- Ainda estão aqui?
Senti vontade de dar-lhe uma bela resposta, mas Sam já estava segurando meu braço e deixando a sala para trás. No caminho até o carro analisávamos o que estivesse naqueles papéis.
- O que temos? – Perguntei, dando a pasta para Sam. Ele folheou alguns poucos papéis. Sua expressão variando por inúmeras emoções ao mesmo tempo.
- Jeniffer Geller. 25 anos. Encontrada morta no jardim da própria casa por volta das 5:20 desta manhã. – Sam fechou a pasta. – Por enquanto é tudo o que temos.
Entramos em meu carro para manter a história de que Sam havia tido problemas com o dele. Como previ, levamos quase quarenta minutos para chegar até o endereço de Jeniffer Geller. Assim que parei o carro, Sam abriu a porta e saiu, ficando apoiado no carro por alguns segundos, respirando fundo.
- Chegamos rápido. – Falei, observando os policiais e peritos irem e virem do interior da casa.
- Da próxima vez eu dirijo. Melhor chegar tarde do que correr risco de morte.
Ignorei o exagero por parte de meu parceiro e segui o mesmo caminho que o resto dos policiais. Um lençol branco cobria um corpo no jardim e dois legistas analisavam o que estava por baixo. Foi diretamente para eles que me dirigi, já mostrando o distintivo.
- O que houve? – Perguntei sem demora.
- Não sabemos bem como relatar isso... – Um deles dizia, erguendo a parte do lençol que cobria o rosto da mulher.
Sorte não ter tomado café da manhã. Seu rosto parecia congelado naquela expressão de dor e havia dois buracos fundos e negros onde deveriam estar seus olhos.
- Os olhos dela foram arrancados? – Sam chegava ao meu lado, também avaliando a cena.
- Queríamos que fosse fácil assim. – O segundo legista parecia incomodado com a situação. – A melhor forma de dizer isso é que os olhos dela foram carbonizados.
- E qual é a dificuldade? – Meus olhos estavam focados nos buracos enegrecidos, como se algo ali estivesse me atraindo.
- Isso aconteceu de dentro para fora. – Foi tudo que o legista disse antes de se calar.
- O cérebro dela derreteu. – Diante de nossas expressões de incredulidade ele logo se defendeu. – Eu sei. Isso é impossível. Mas é o que aconteceu.
Pelo resto daquele dia ficamos na casa, recolhendo possíveis pistas, falando com vizinhos, analisando o corpo. Já era o fim da tarde quando enfim pudemos ir embora daquele lugar. Jeniffer, pelo que vimos em sua casa, não tinha problemas médicos nem financeiros, se dava bem com os vizinhos e com a família, não tinha namorado. Nada justificava sua morte, muito menos de forma tão anormal.
Sam já estava no carro quando assumi o volante. Seu olhar estava atento a algo um pouco distante e parecia curioso demais com seja lá o que fosse.
- O que foi? – Questionei.
- Quem é aquele homem? – Meu parceiro apontou na direção da faixa amarela que fechava a cena do crime. – Ele esteve exatamente naquele lugar o tempo inteiro. Horas e horas.
Só então reparei no homem alto e magro parado ali. Ele mantinha as mãos nos bolsos de uma calça preta, vestia uma camisa social azul escura e o cabelo era completamente negro. Nada assustador em sua aparência, mas de fato ele não se mexia, e isso era perturbador. Sem darmos mais atenção ao estranho, fomos embora.
Já achávamos o caso de Jeniffer algo impossível de se resolver, mas as coisas só ficaram mais confusas a cada dia. Dois dias depois daquilo fomos chamados ao museu de bonecas de Seattle, onde uma das Guias do local parecia ter sido atacada por um animal feroz. Uma mordida enorme quase transpassava toda sua garganta.
Vistoriamos o museu. Nada fora do lugar, nenhum sinal de luta ou de que ela tivesse tentado fugir. Era como se Rachel Jones houvesse se sentado e oferecido seu pescoço para um tigre.
Pelas quatro semanas que se seguiram, vimos do mais estranho ao impossível. As notícias sobre as mortes se espalhavam na mídia e as pessoas começavam a temer o assassino. Mais três só naquele mês.
Danielle Smith, cozida na piscina da própria casa após a água simplesmente ferver. Sarah Parker, teve o coração arrancado pelas costas. Anne Miller, aberta do umbigo até a garganta, sem coração, fígado e pulmões.
O terror já era absoluto por Seattle. Sam e eu passamos quase o tempo inteiro no Departamento. Analisando o quadro branco onde estavam dispostas, as fotos das vítimas e pequenas anotações.
- Foi ele. Tem que ter sido ele. – Sam havia circulado o homem alto de cabelos negros nas fotos de todos os crimes.
- Pode até ter sido. – Eu não estava assim tão certa. – Ou não. Por que ele voltaria aos locais dos crimes? Seria arriscado demais.
- Olha o que ele fez com essas garotas, Mad. – Meu parceiro apontava para cada uma das garotas nas fotos. – Ele não pode ter a cabeça no lugar. Ele não pensa nos riscos.
- Certo, Sammy. Certo. Mas como ele conseguiu fazer metade disso? A maioria desses crimes aconteceu de uma forma inumana. – Levantei de minha cadeira e fui até a porta. – Vou buscar um café e algo para comer. Trarei para você também.
Sam não respondeu e não esperei resposta. Apenas saí. Estava cansada daquele caso. Queria resolvê-lo logo, prender o maníaco que fazia isso e dar paz para as mulheres de Seattle e também para mim. Perdoem o egoísmo, mas eu queria dormir!
Levei algum tempo para voltar. O café estava lotado apesar da hora, e dirigi devagar. Tentava apenas esfriar um pouco a cabeça antes de voltar para aquela sala fechada cheia de fotos de cadáveres mutilados.
Assim que voltei deixei um saco de papel com bolinhos e café ao lado da porta, voltando a analisar o quadro de evidencias.
- Algum avanço? – Perguntei.
- Nada. Nem ao menos consigo ligar um crime à outro. – Sam respirou fundo e esfregou os olhos. – Preferimos acreditar que seja um assassino em série do que uma gangue de assassinos.
O som do saco de papel sendo aberto chamou nossa atenção. Imediatamente me virei para a porta e Sam ficou em pé. O homem alto que aparecia nas fotos estava calmamente sentado comendo um dos bolinhos.
- Sabe, essa comida é realmente boa. – Disse ele, como se fosse perfeitamente normal invadir o departamento de homicídios para comer bolinhos.
- Como entrou aqui? – Estava assustada. – Tranquei a porta principal quando entrei. Quem é você?
Estava com a mão na cintura, pronta para puxar minha arma se necessário. Sam fazia o mesmo. O invasor parecia nos ignorar e continuava a comer.
- Como entrou aqui? – Sam agora estava impaciente, algo raro de acontecer. – Você matou aquelas mulheres. Como?
Aquele homem continuou sentado onde estava, calmo com o nervosismo de nossa parte. Sam queria respostas e as teria, mesmo que a força.
- Responda ou atiro em você!
- Atire se quiser. – Disse ele, abrindo os braços e se expondo à mira da arma. – Não acontecerá nada.
- Você é louco. – Sussurrei diante da idéia de que um tiro direto não faria nada em alguém.
Ele continuava sentado quando puxou uma faca e nos fez ainda mais alerta aos seus movimentos. A lâmina deslizou pelo próprio braço gerando um corte fundo e longo que, para o nosso choque, começou a cicatrizar em uma velocidade enorme.
- O que é você? – Sussurrei.
- Um demônio. – Ele foi direto. Levantou-se e começou a analisar o quadro branco onde estavam as fotos e anotações. – Olha, vamos pular a parte em que vocês defendem a teoria de que só existem humanos neste mundo. Demônios existem. Bruxas. Vampiros. Metamorfos. Tudo isso.
- São histórias inventadas. – Falei. – Nada disso é real.
- Certo. Como se os humanos tivessem a capacidade de criar criaturas como nós. – Quando ele olhou em minha direção seus olhos mudaram de negro para vermelho vivo, me fazendo recuar. – Vamos ao que interessa. Estas mortes.
- Você fez isso. – Sam acusou sem medo. – Qual é o seu nome?
O demônio pareceu sumir no ar até ressurgir ao lado de Sam passando o braço por seus ombros.
- Você quer saber sobre mim ou sobre as mortes? – Antes que Sam pudesse responder o demônio continuou. – Pois bem. Contarei minha história.
Novamente ele sumiu antes de reaparecer na mesma cadeira de antes. O invasor se recostou na cadeira e cruzou os braços começando a falar sobre si mesmo.
- Meu nome é Beliel. Sou o filho do Rei do Inferno.
- Beliel? – Sam segurou o riso.
- Você é filho de Lúcifer? – Estava chocada.
- Fala sério... – Beliel parecia olhar para mim com certa surpresa. – Por onde começar? Lúcifer não é o Rei do Inferno, ele apenas coordena as coisas por lá. Lúcifer é como um gerente e meu pai o dono. Compreendem?
- Não muito... – Fui sincera.
- Entendo. Os humanos distorceram muitas (ou todas) as coisas que deveriam saber sobre o lado sobrenatural de suas existências. Continuando... – Beliel pensou um pouco, respirou fundo e voltou a falar. – Sou o filho mais velho e tenho uma irmã mais nova. Há alguns anos houve uma rebelião no Inferno e para protegê-la nosso pai a arrastou para o mundo dos humanos.
- Protegê-la? – Sam intervinha no relato do demônio. – Não sabia que demônios se importavam uns com os outros.
- Não entenda errado. Tenho metade do poder de meu pai, e minha irmã a outra metade. Se ela acabasse morta, eu seria um alvo fácil. – Beliel voltou para perto dos bolinhos, pegando o terceiro e começando a comê-lo. – Se isso acontecesse, Lúcifer poderia tomar o poder do Inferno. Meu pai não queria isso. Assim mantemos as coisas em família. Os humanos chamam isso de Monarquia, acho.
- Isso parece ter muitas regras. Sempre achei que o Inferno fosse só uma bagunça quente. – Meu parceiro sentou-se mas não tirou a mão da arma. – O que mais tem por lá? Parlamento?
- Podemos discutir milênios da política do Inferno quando quiser, Sammy. – Beliel estava completamente relaxado. Era como se todos fossemos velhos amigos. Ele mastigou mais um pedaço do bolinho e apontou para o quadro branco. – Porém, vim por causa disso. É um ótimo trabalho.
- Seu trabalho. – Acusei.
- Oh. Não, não. – Mordeu mais um pedaço do doce e falava com a boca cheia. – Isso é trabalho de um profissional, mas não meu. Vim parabenizar você.
- O que? – Minha voz saiu mais alta do que gostaria. – Pare de dizer bobagens! Lógico que não matei ninguém.
Beliel riu, realmente se divertindo com minha reação. Ele largou o papel do bolinho sobre a mesa e levantou-se.
- Você não se lembra? – Ele se aproximou de mim e Sam o colocou na mira da arma. – Foi tudo você. Cada uma destas mortes.
Beliel estava agora muito mais perto, apoiando ambas as mãos em meus ombros. Não conseguia me mover. Tudo o que ele dizia era mentira, mas uma voz dentro de mim parecia pedir que eu acreditasse. A voz de Sam estava longe, pedindo que o demônio se afastasse de mim. O som extremamente alto de um tiro disparado em uma sala fechada me trouxe de volta. Baixei os olhos para a mancha de sangue que se formava na lateral da camisa do demônio.
- O que eu deveria dizer agora? Ai? – Beliel havia me soltado se mantendo perto. Respirava fundo e puxava o projétil para fora no furo entre as próprias costelas. Jogou o pedaço de ferro distorcido sobre a mesa na frente de Sam. – Isso é seu. Agora vai largar essa droga de arma?
Eu estava em choque. Sam vacilou e a arma caiu no chão o deixando de guarda baixa. O demônio foi até a mesa e pegou um marcador, voltando ao quadro.
- Vamos brincar. – Beliel desenhou seis traços horizontais e um grande vertical. Um infantil jogo de forca. Preencheu o primeiro traço com a letra A e o último com a letra S por fim estendendo o marcador em minha direção. – Complete isso para mim.
Hesitante peguei o marcador e fiquei observando os espaços vazios. Por que eu fazia o que Beliel pedia? Não tinha como saber o que ele esperava que estivesse escrito ali.
- Madison... – Ouvi a voz de Sam atrás de mim, preocupada e baixa.
Havia outra voz. Dentro de minha mente era como se alguém falasse comigo. Soletrasse. Estiquei a mão e preenchi os espaços com as letras que me vinham ao pensamento. G. A. R. E. Soltei o marcador no chão e dei dois passos para trás.
- Perfeito. – Beliel sorria.
- O que? O que é perfeito? O que é isto? – Começava a me sentir assustada por ter preenchido aquilo com as letras que o demônio esperava.
- Agares. – Sam leu e por algum motivo me virei para ele. Da mesma forma que alguém se vira ao ouvir o próprio nome ser chamado.
Por um breve instante vi os olhos de Sam se arregalarem e não tive tempo de me virar e desviar da faca que Beliel cravava em meu estomago. Senti dor. Sangue manchava minhas mãos e escorria por minha boca. Começava a ter frio. Meu corpo caiu para trás. Estava morrendo.
Com a visão turva podia ver Sam correndo para perto e Beliel apenas parado observando. Já não conseguia distinguir sons. Fechei os olhos e me deixei levar. O demônio havia me matado e Sam seria o próximo.

Não sei por quanto tempo estive daquela forma até que a faca fosse retirada de meu estomago. Pouco a pouco os sons voltavam ao volume normal. Como isso podia acontecer? Algo estava errado em mim. Não me sentia eu mesma.
- Levante-se. – A voz de Beliel veio imperativa.
Abri os olhos e a luminária incomodou minha visão. Claro demais. Respirei fundo e fiquei sentada. Meus dedos tateavam a ferida ainda aberta que começava a fechar. Olhei para Sam e tudo o que encontrei foi surpresa, choque e medo em seus olhos. Meu parceiro tremia. Esbocei um leve sorriso ficando em pé.
- A próxima vez que me esfaquear eu degolo você. – Minha voz soou baixa e estranha aos meus ouvidos. As palavras também eram diferentes.
- Sammy... – Beliel falava alto com certa empolgação. – Conheça minha irmã mais nova, a Princesa do Inferno, Agares!
- Ma... Madison... – Ele gaguejou se colando à parede mais afastada o possível. – O que aconteceu com seus olhos? Estão vermelhos. Como você se levantou?
Por alguns segundos apenas observei o humano assustado. Uma minúscula parte de mim se doía por ele, mas a parte dominante não se importava muito. Sorri, aproveitando o medo e a confusão que emanavam de Sam.
- Nunca gostei desse nome, sabia? Madison. – Ri ao som do nome. – Oh, Sammy. Relaxe. Se tivesse a vontade de matar você, teria feito isso anos antes. Agora... Beliel é uma outra história.
Meu irmão cruzou os braços oferecendo um olhar superior. Ignorei sua expressão de ameaça e aproveitei o conforto da cadeira mais próxima a mim. Enrolava uma mecha de cabelo nos dedos enquanto analisava as fotos no quadro.
- Tive que mutilar humanos para que você viesse atrás de mim? Está perdendo o jeito, irmão. – Um riso sádico escapou por minha garganta.
- Apagamos sua memória e bloqueamos seus poderes. Jamais achei que houvesse preocupações.
Beliel estava perdendo a paciência muito rápido e eu estava adorando isso. É da natureza dos demônios sermos dissimulados e irônicos. Alguns de nós tentam viver entre os humanos como se fossem um deles, mas a maioria via a vida humana como almoço. Eu via com indiferença.
- O que vocês conseguiram foi me arrumar uma dupla-personalidade, seu imbecil. – Levantei de onde estava e me aproximei de meu irmão. Beliel era uma ameaça para qualquer outro Ser no Inferno ou na Terra, mas para mim era um reflexo masculino. – Tem idéia do que é passar duas décadas enterrada no fundo de uma mente que acredita ser humana? Queria vomitar a cada refeição humana. Queria comer a cada cena de crime. Queria retalhar a cada repreensão do chefe de polícia.
- Como se manifestou? – Beliel não estava nem um pouco interessado no porque, apenas queria saber como.
- Levei anos cavando a parede mental que bloqueava a minha existência. Ainda sim estava fraca para voltar ao Inferno. – Dei as costas para meu irmão e fui até o quadro branco, arrancando fotos e atirando pelos ares. – Tive de caçar como uma Besta para conseguir a atenção do Príncipe.
- Foi mesmo você... – A voz de Sam veio fraca e distorcida. Já havia até esquecido-me do humano.
- Ora, Samuel. Nunca existiu a doce e ingênua Madison. Era apenas um papel que eu estava sendo forçada a interpretar todo maldito dia. – Minha raiva aumentava e isso era perigoso. – Não importa o quanto de compaixão que eles dêem... Humanos ainda não valem nada.
- Como... Como as matou? – Ele tremia.
- Não vejo necessidade desta pergunta. Os legistas já lhe deram tudo. – Cruzei os braços, arqueando uma das sobrancelhas. – Fritei o cérebro de Jennifer e seus olhos. Rachel foi um lanche apenas. Estava com fome. Danielle... Apenas esquentei um pouco a piscina. Arranquei o coração de Sarah. Anne foi meu jantar naquele dia. Seu coração e fígado estavam ótimos, mas tive que desistir dos pulmões. Ela era fumante, sabe?
Impossível conter o riso que veio logo após a piada macabra. Sam, por outro lado, ficava mais pálido a cada morte que eu lembrava. Não foi surpresa quando ele desmaiou atrás da mesa.
- Humanos... – Suspirei. – Bem, por que não veio atrás de mim antes? Sabia o que eu estava fazendo.
Meu irmão calmamente se sentou e revirou o saco de bolinhos, reclamando por não encontrar mais nenhum. Recostou na cadeira e cruzou os braços.
- Você sabe muito bem que mortes violentas sempre jogam as almas no Inferno. – Beliel jogou as mãos para cima. – Por que eu pararia sua caçada se o Inferno estava lucrando com isso?
- Mas parou agora.
Beliel estalou os dedos e sorriu em uma demonstração sem palavras de que eu estava certa em algo.
- Apenas me fiz presente, irmãzinha. Se quiser continuar com sua caçada... Fique a vontade. O Inferno agradece. Quanto mais almas tivermos por lá, mais divertido será torturá-las. – Meu irmão destampou um dos copos de café e bebeu um gole. – Por que os humanos bebem isso? É horrível.
- Não mude de assunto, Beliel. Se estava satisfeito com minha matança não teria porque vir até mim. Podia apenas ter fingido não saber. – Conhecia meu irmão o suficiente para saber que tinha algo por trás disto. Não prezamos a ideologia de laços familiares e sangue do meu sangue. Beliel já teria me matado se não precisasse de mim, e eu com certeza faria o mesmo.
Para um demônio só importa a própria vida. Humanos não passam de distração e comida, e outros demônios são apenas cartas dispensáveis em um baralho velho. Para um demônio a única coisa que tem valor, é a própria vida.
- Você precisa voltar para o Inferno. – Ri diante da confirmação de meus pensamentos. Beliel continuou. – Lúcifer está tentando dominar o Inferno. Sem você lá, tenho apenas metade do meu poder. Não estou muito a fim de deixar meu império de morte e agonia nas mãos de um anjo caído.
Olhei em volta por alguns segundos. Estava entediada. O mundo dos humanos era uma droga onde as pessoas agiam com falsidade e sorrisos forçados para agradar outras pessoas que faziam exatamente o mesmo.
- Saia e traga uma mulher com minha altura e meu tipo físico. – Foi tudo o que disse.
Beliel tinha milênios de experiência em saber que não adiantava discutir comigo ou perguntar os porquês de meus planos. Em um segundo meu irmão estava ali, no outro já havia desaparecido.
Com poucos minutos meu irmão estava de volta com uma mulher magra de longos cabelos castanhos. Beliel quebrou o pescoço da jovem para que morresse, o que provava que ele já fazia alguma idéia de meus planos.
Pedi que carregasse Sam para fora, afinal, mesmo que o humano não tivesse grande valor, era fato que durante anos ele protegeu minha vida como humana. Contra vontade Beliel o arrastou pelos corredores.
Mais uma vez corri os olhos pelos inúmeros documentos, fotos e provas do caso que eu mesma havia iniciado e investigava sem lembrar de nada. Abaixei ao lado da garota morta e meus dedos tocaram seu cabelo que logo se incendiou. O fogo correu de forma anormal tomando todo o corpo da jovem. Assisti ela ser lentamente carbonizada.
Caminhei pela sala tocando papéis e pastas. Por onde meus dedos passavam o fogo começava. O fogo fazia parte de mim. Assim como o Inferno queima, os Príncipes dominam as chamas. Não sentia o calor, mas em poucos minutos toda aquela sala estava em chamas. Fui para os corredores, outras salas, recepção, sala de espera... Cada cômodo do Departamento de Homicídios de Seattle recebeu meu toque. Quando cheguei até a porta da frente, todo o prédio ardia e estalava com o fogo. Vidros estouravam com a pressão e vigas de madeira do teto cediam partes do concreto.
Do lado de fora, Beliel havia largado Sam no chão e assistia ao incêndio de braços cruzados. Peguei o celular e disquei o número de emergência passando o aparelho para meu irmão. Beliel fingiu uma tosse perfeita e um desespero teatral ao informar que era funcionário do Departamento e que o prédio estava em chamas.
Nos afastamos um pouco do local, apenas o suficiente para não sermos vistos mas vigiarmos a movimentação. Quando os bombeiros e a polícia chegaram, Sam começava a acordar e ficava desnorteado com a bagunça. Médicos e enfermeiros corriam até ele prendendo ao seu rosto a máscara de oxigênio. Faziam perguntas que eles mesmos respondiam. “O senhor ligou para a emergência? Claro que foi. Fique calmo.”
Sam foi colocado em uma ambulância afastada do incêndio. Os bombeiros combatiam as chamas com todas as forças, mas algo sobrenatural parecia mantê-las constante. Difícil disfarçar meu sorriso de orgulho. Assim que os médicos se afastaram de Sam, nós nos aproximamos.
- Samuel. – Ele abriu os olhos e se encolheu. Continuei sem dar importância. – Estamos quites. Por vários anos você cuidou de meu lado humano, e agora poupei sua vida no incêndio. Porém, entenda bem o que vou dizer. Encontrarão um corpo dentro do prédio. Dada a carbonização quase total, será impossível fazer testes que identifiquem o corpo. Você dirá que sou eu, e que não sabe como o incêndio começou.
O humano mantinha os olhos arregalados e balançava a cabeça em confirmação a cada frase minha. Acredito que Sam concordasse com tudo que me tirasse de perto dele, nessa altura da situação.
- Nunca, por nenhum motivo, conte sobre quem nós somos e de onde viemos. – Meus olhos reluziram o vermelho vivo assim como os de Beliel, ameaçadores. – Do contrário, sua vida acabará e sua alma será levada ao Inferno. Eu mesma virei arrancar seus órgãos caso descumpra esta ordem.
- Aproveite bem essa chance, Sammy. – A voz de Beliel era um sussurro arrepiante.
- Adeus, Samuel Walker.
Dei as costas ao humano. Aquela minúscula parte em minha mente chorava, mas foi extremamente fácil bloqueá-la. Isso destruiu qualquer fragmento de humanidade que ainda estivesse em minha mente. Nos afastamos poucos passos, e mais alguns passos depois já não havia mais sinal de nossa presença.
Com o passar dos dias Seattle voltou ao ritmo normal. Mais nenhuma morte como aquelas aconteceu, e a população deixou de pensar nisto. Na polícia, lamentavam a trágica morte de uma Investigadora tão competente. Os restos carbonizados da garota sem nome foram colocados sob a lápide de Madison Hale no cemitério local.
O incêndio no Departamento de Homicídios destruiu os documentos e provas de uma centena de casos ainda não resolvidos. Para mim isso pouco importava. Assassinos e ladrões continuariam soltos, matando e jogando almas ao Inferno.
O mundo dos humanos ficou para trás e agora o Inferno voltava a ser meu lar. O começo foi difícil, muitos duvidavam do regresso da Princesa, mas com o tempo minha presença se tornou evidente. Com a permanência de ambos os Príncipes, Lúcifer parecia desistir do plano suicida de dominar nosso império, e continuava sendo apenas o gerente. Beliel era o responsável por punir os demônios que descumpriam as ordens de Lúcifer, e eu a responsável por vigiar as torturas eternas dos humanos condenados ao Inferno. Poucos dias deste trabalho foram o suficiente para apagar definitivamente Madison Hale de minha alma. Agora era apenas Agares, a Princesa do Inferno.
Jamais voltei ao mundo dos humanos e nem senti vontade de fazer isto. Um mundo deplorável de pessoas falsas que acreditam acima de tudo que são as criaturas mais importantes e mais capazes do universo. Nojento. O que aconteceu com Sam? Ora, por que eu deveria saber? Se não dou qualquer valor para a raça humana, que dirá um único humano descartável. Se com o passar dos anos ele veio a morrer, não caiu nos campos do Inferno, infelizmente.
Os humanos acreditam cegamente que uma boa ação poderá apagar uma vida de pecados, e ignoram a perfeita chance de pagar eternamente por um erro. Você acredita no que vê, ou vê apenas o que acredita? Nada garante que a verdade seja só aquilo que você consegue ver. Não viva crendo que apesar de tudo o que fizer, um Deus misericordioso com certeza perdoará sua alma. Lembre-se que nós também estamos esperando. Se o Bem vale uma vida, o Mal também vale uma vida. Isso faz parte vida... Ou da morte... Ou de nossa própria existência. Para que ter pressa se o destino inevitável é uma caminhada para a morte? Faça valer a pena. Siga com calma e aproveite seus dias, afinal, qualquer coisa... Qualquer um... Qualquer lugar... Um dia termina.
- FIM -

Infiltrado



Lá estava eu, em minha cama, deitado no escuro, olhando o ventilador girar preguiçoso no teto. Uma carta simples estava jogada no chão, ao lado da cama. Nela poucas palavras, mas que agora começavam a me irritar. “Eu te perdôo”.
Meus pais morreram quando eu tinha 5 anos, depois morei com meu irmão mais velho na casa de uma tia em Campinas. Quatorze anos depois meu irmão estava casado e morando em outra cidade. Nossa tia havia falecido pela idade e eu me virava sozinho em um apartamento no centro de São Paulo.
Aos meus 23 anos tinha uma vida normal. Havia me formado em Direito em uma universidade de renome há cerca de onze meses, mas desde os 16 anos atuava na Força Tarefa de Infiltrados da Policia. Não tinha um grande salário, mas podia me manter em um apartamento médio sem grandes gastos. O que jamais entendi foi o fato de ser um péssimo exemplo incorrigível e ainda assim as pessoas se atraírem para perto de mim. Considero isso uma grande idiotice.
- Idiota... – Minha voz sussurrada pareceu alta no silêncio do quarto escuro. Aquela carta estava penetrando como uma bala as muralhas que eu passei a vida construindo em torno de mim mesmo. Eu não gostava de ninguém do lado de dentro.
Fechei os olhos e suspirei, levando minha mente para dois meses antes. Para as lembranças às quais aquela carta se referia, de uma forma irritante e subliminar.
O carro preto parou a um quarteirão de distância. De lá podíamos ver as pessoas que entravam e saíam do Castelinho. Hoje o lugar era dominado por grupos góticos de viciados em drogas que se sentiam atraídos pela atmosfera bizarra. A porta do motorista se abriu e um par de belas pernas se projetou para fora. Do lado do passageiro, minhas pernas envoltas no jeans escuro.
- Tem certeza disso? – Questionou a voz feminina e suave de minha superiora.
A fumaça vinda de meus lábios rodopiou. Eu não tinha nada para dizer. Meus dedos atiraram o cigarro ao chão e meu tênis cuidou de apagar a brasa. Enfiei as mãos nos bolsos e comecei a andar na direção de minha nova missão.
- Kauê! – Ela chamou. Eu parei de andar, apenas esperando que ela continuasse suas palavras. - Não faça amigos aqui. Se confiar demais pode por em risco a operação. – Sua preocupação com a minha vida era notável, se me permite o sarcasmo.
Virei apenas o rosto, olhando-a por sobre o ombro. Diziam que meus olhos eram frios e ameaçadores e eu até gostava da classificação.
- Eu não confio em nada que seja capaz de pensar. – Ignorei qualquer outra palavra de minha superiora. Odiava ser subestimado daquela forma. Voltei a andar até desaparecer entre as pessoas no Castelinho.
Enquanto eu caminhava para a entrada, repassava os fatos de meu novo caso. Alguém estava chefiando uma rede de tráfico de drogas naquele lugar. Era o que tínhamos, mas eu suspeitava de contrabando de armas ou qualquer coisa a mais. Tinha experiência o suficiente para saber que um crime nunca vem sozinho.
Adentrei o Castelinho já sabendo o que esperar e nada ali me chocou. Nem a escuridão dos cantos. Nem o centro iluminado por luzes vermelhas. Nem os corpos largados pelo chão ou dançando sem qualquer ritmo na música alta. Um garoto que não teria mais de 15 anos me ofereceu um cigarro de maconha. Disse que aceitava e assim que ele se afastou eu troquei a droga por um de meus próprios cigarros. Não que a nicotina fosse benéfica, isso eu bem sabia (e meu pulmão também), mas ao menos mantinha a minha consciência onde deveria estar.
Andei pelo lugar, tentando não chamar a atenção. Escolhi um canto mais vazio e deixei meu corpo cair, fazendo crer que eu estava fora de meu equilíbrio normal. Deixei os joelhos dobrados, apoiando os braços neles. Pendi a cabeça para trás até encontrar a parede e fiquei observando. Não demorou mais que dez minutos para uma garota surgir do nada e começar a se esfregar em mim como um cão no cio. Era magra, bem mais baixa que eu, seu cabelos eram ruivos e compridos, provavelmente tingidos até aquele tom de sangue. Eu não via seus olhos, mas suas curvas chamavam atenção.
- Que merda está fazendo? – Falei com rispidez ao afastar a garota.
- Você parece sozinho. – Respondeu a ruiva com uma voz rouca, novamente vindo pra cima de mim, dessa vez bagunçando meu cabelo com os dedos. – Eu amo loiros. Você é bonito.
Por um momento pensei em novamente afastá-la e sair dali, procurar outro canto para observar, mas decidi agir de outra forma. Entreguei-me aos toques da ruiva. Deixei que ela se grudasse ao meu corpo e não resisti quando ela me beijou, embora tenha feito um notável esforço em ignorar o gosto de maconha que impregnava seu hálito. Ela logo se sentiu confortável com a liberdade que eu estava dando e partiu para o próximo nível. Como Agente não sei o que pensar, mas como homem afirmo que a melhor invenção da humanidade foram as minissaias. A ação foi rápida e meu êxtase involuntário, mas ela enfim estava ofegante, abraçada a mim.
- Seu nome? – Tentei parecer interessado.
- Andressa. – Ela falou cada sílaba de forma pausada, sussurrando bem perto de meu ouvido.
Simulei uma conversa casual e obtive informações relevantes. Andressa tinha 18 anos e freqüentava o Castelinho há três. Ali acontecia de tudo. A conversa continuou até de manhã. Inventei qualquer desculpa e saí do lugar. No caminho para casa fiz um relatório por telefone à minha superiora. Em casa, dormi no sofá com a mesma roupa que estava.
Na noite seguinte voltei ao lugar. Dessa vez Andressa me encheu de perguntas. Em algumas fui sincero. Ela sabia meu nome, minha idade, que era órfão e que tinha um irmão. Achava que eu morava em um abrigo, que era viciado em maconha e que estava apaixonado por ela. Verdades e mentiras.
Estávamos no meio da noite quando três caras me puxaram e senti minhas costas baterem com violência na parede. Um deles dizia que “O Chefe” queria conversar comigo. Fomos levados por uma porta ao fundo da improvisada pista de dança e logo empurrados para o chão. Em um confortável sofá um homem estava sentado, rodeado por duas mulheres praticamente nuas. A conversa foi longa, mas em resumo minha vida foi ameaçada. Ali também funcionava uma rede de prostituição e Andressa era a preferida do chefe.
- Se quer brincar com ela, pague por isso! – Dizia o homem que se apresentou como Vinicius.
Revistaram meus bolsos e fizeram perguntas. Mantive minha história já contada à ruiva.
- Se é assim tão desgraçado, como usa cigarros importados? – Um segurança me questionava, cheirando o maço tirado de meu bolso.
- E o que te faz pensar que eu paguei por isso? – Respondi com frieza.
Tendo certeza que não estava armado, nem possuía uma escuta, nem qualquer identificação de que eu seria uma ameaça para a organização, eles me soltaram. Estava orgulhoso de minha capacidade de infiltração e aceitei de bom grado a garrafa de vodka ainda lacrada. Como disse, não sou nenhum tipo de exemplo. Rompi o lacre da garrafa e virei um gole profundo da bebida. Levou menos de cinco minutos para que o mundo girasse. Meu coração disparou quase imediatamente. Minha cabeça latejava e eu sentia uma vontade de por meu jantar para fora. Cai de joelhos. Senti meu corpo dar sinais de tremedeira. Mãos fortes me seguraram e fui jogado para fora do Castelinho. Com extrema dificuldade puxei meu celular do bolso e apertei o botão da ligação de emergência. Logo eu estava inconsciente.
Acordei no hospital. Uma máscara de oxigênio estava em meu rosto. Ao meu lado minha superiora estava em pé. Relatou que eu estava inconsciente há três dias e que durante esse período uma menina ruiva vinha saber de meu estado. Sentei na cama sob protestos e arranquei todos aqueles fios e cabos de mim. Meus olhos pesavam e eu apoiei a cabeça nas mãos.
- Êxtase. – Minha voz mal saiu. – Eles devem agir com contrabando de bebidas também. A garrafa estava lacrada. – Eu me justificava.
- O que eu preferia saber é por que você estava bebendo em serviço. – A voz de Ângela, minha superiora, era dura.
Não continuei a discussão. Eu tinha tudo o que precisava para concluir o caso, e só isso me importava. Meus olhos viram a moça ruiva encolhida na porta do quarto. Andressa trazia uma cesta com frutas e se dispôs a cortá-las para mim. Eu me mantive quieto, distante. A garota disse que depois do meu sumiço ficou assustada e estava procurando uma forma de se afastar das drogas, mas sozinha não tinha forças. De cada dez palavras que dizia, eu ouvia menos de cinco. Minha mente estava ocupada em formular a operação. Ao final do dia já tinha saído do hospital e despistado Andressa. Passei meus planos para o resto da equipe em reunião no 8º andar do Palácio da Polícia, no centro da cidade. Tudo foi armado.
Passava de onze da noite quando os carros cercaram os quarteirões em torno do Castelinho. Dúzias de policiais fardados de negro se moviam abaixados pela rua. A investida foi rápida. Eu mesmo estava na linha de frente, com arma em punho e o cigarro no canto da boca. A maioria logo se jogou no chão se rendendo. Apenas os de cargo mais alto começaram um revide de tiros. A correria foi enorme e os que saiam do prédio eram segurados pela guarda montada do lado de fora. Meus olhos encontraram o homem que havia me levado para aquela armadilha de êxtase. Mauro, o irmão e braço direito de Vinicius, foi minha única vítima naquela noite. Minha paciência já tinha se esgotado e o tiro vindo de minha arma me trouxe alivio.
A operação levou uma hora. Rápida para o que estamos acostumados. Do lado de fora fazíamos a triagem em três grupos. As vítimas fatais eram levadas para o IML. Os chefes do bando eram levados para os camburões. Vinicius me olhava com ódio profundo enquanto um policial o arrastava à força para o carro. Eu havia matado seu irmão e destruído sua quadrilha. Compreensível. O terceiro grupo, esse em maior quantidade, eram os viciados que nada de mal haviam feito além de se destruir. Eles estavam sendo colocados em diversos carros e levados para centros de reabilitação.
- Eu confiei em você! – Ela gritou e eu me virei para ver Andressa ser carregada para um dos carros. Ela esperneava e chorava, olhando em minha direção. Sim, ela confiou em mim, e eu a usei desde o primeiro instante. Agora ela estava sendo levada a um centro de viciados. Ela confiou em mim.
- E esse foi o seu erro. – Sussurrei, vendo o carro se afastar, levando a ruiva para longe. Não importava. Eu só queria ir pra casa, tomar banho e dormir.
Dois meses se passaram e eu não perdi um minuto de meus dias para relembrar a operação do Castelinho. Foi quando aquela maldita carta chegou para devastar meu mundo. Pessoas internadas em centros de reabilitação muitas vezes progridem e podem sair, se supervisionadas por alguém que não use drogas. É como pagar fiança. Você vai, reconhece sua Pessoa-Problema e volta pra casa com ela.
Meus dedos deslizaram pela cama até encontrar o celular. Apertei a discagem automática e fiquei ouvindo.
- Damasceno. – Atendeu a voz de Ângela.
- Faça-me um favor. Peça a liberação de uma paciente do Centro de Reabilitação. Andressa é o nome. Diga que estou indo buscá-la. – Desliguei sem esperar qualquer resposta.
Eu me questionava que droga de sentimento era aquele. Respirei fundo e me levantei indo buscar a única pessoa que venceu minhas barreiras internas de uma forma que nem eu mesmo pude perceber.

- FIM -

Imortalidade



Lembro-me dos dias passados ao lado dele. O homem que fazia o perfeito estilo menino mal que havia se mudado para a casa ao lado há algumas meses. Jay Knight tinha 23 anos, um corpo atlético, cabelo loiro propositalmente desalinhado e um belo par de olhos verdes. Seus 1,95 de altura o faziam bem mais algo que eu, mas isso era o de menos. Resumindo, o loiro era perfeito para se tornar um rockstar.
Ao me sentir atraída por Jay, comecei a mudar meus hábitos. Troquei o jeans e a camiseta pelas roupas góticas e acessórios de metal, em uma tentativa de ser mais atraente para ele. Não sei se foi a mudança física ou não, mas poucas semanas após sua chegada, Jay e eu iniciamos um relacionamento.
Ambos morávamos sozinhos. Eu porque ficara órfã doze anos antes e meu irmão problemático havia ido embora. Ele por motivos que eu viria a descobrir meses depois.
Estávamos dormindo em sua casa quando, no meio da noite, uma discussão me acordou. Curiosa, desci as escadas até a sala onde Jay e outros dois homens discutiam. Os estranhos me olharam por um segundo e suas expressões variaram de sarcasmo à incredulidade.
- Sugiro que a tire daqui. – Disse o estranho que usava um sobretudo preto e tinha os cabelos longos e negros. Seus olhos possuíam um estranho tom de azul gélido que me causaram arrepios.
- Arissa. – Jay falava baixo, sem tirar os olhos dos estranhos. – Por favor, volte para sua casa e fique lá. Amanhã lhe explicarei melhor.
- Não vou deixar você sozinho com esses estranhos. – Retruquei. E não pretendia fazer diferente mesmo.
O outro estranho riu. Este tinha cabelos curtos e castanhos, e vestia roupas escuras. Seus olhos tinham a mesma cor sombria que o outro.
- Somos irmãos dele. – Disse o homem de cabelos curtos.
- E quem lhe perguntou alguma coisa? – Encarei aquele homem sem medo algum.
- Ora, sua... – Ele deu um passo à frente, mas parou quando Jay se colocou entre nós.
- É verdade que são meus irmãos. Arissa, por favor, vá.
Após muita insistência de Jay, fui embora. Cruzei o jardim até minha casa, e fiquei observando pela janela da sala. Ficaria de olho na movimentação na casa de Jay, e se ouvisse algo fora do normal, chamaria a polícia. Não me importava se eram irmãos dele, o que notei foi pura tensão no loiro e sabia que algo estava errado.
Horas se passaram e nada havia mudado. Não ouvi gritos ou barulhos altos vindos da casa, tão pouco vi qualquer um deles deixar o lugar. Já era manhã e nada acontecia. Comecei a ficar impaciente, andando de um lado para outro, sem sair do perímetro da janela. Eles poderiam ter matado Jay e saído pelos fundos da casa.
Mais duas horas se passaram até que não suportasse mais a espera e retornasse até a casa de meu atual namorado.
Bati na porta e ninguém respondeu. Mais alguns minutos, e eu entrei por conta própria. Tudo estava escuro. As cortinas fechadas. Não havia nenhum barulho na casa. Pensei em chamar por Jay, mas achei melhor me manter em silencio e procurar por qualquer dos três.
Não havia ninguém na sala. A cozinha também estava vazia. Tudo estava arrumado, indicando que não havia acontecido nenhuma luta física. Passei pela porta da biblioteca e estiquei a mão para a maçaneta, sem coragem de virá-la. Havia dois locais na casa que Jay me proibia terminantemente de entrar. Um deles era a biblioteca. Preocupada com ele, ignorei suas ameaças e entrei.
A biblioteca era simples e incrível ao mesmo tempo. Não havia janelas e as quatro paredes eram forradas do chão ao teto com estantes cheias de livros, a não ser pelo espaço da porta. No centro um sofá circular e uma pequena mesa. Caminhei olhando as prateleiras. Todos os livros me pareciam muito antigos, com capas frágeis gastas pelo tempo. Provavelmente eram relíquias. Sobre a mesa havia pergaminhos e papiros com escritas de outros idiomas e ilustrações estranhas. Um grosso livro estava aberto ao lado. Suas folhas delicadas eram preenchidas com o que identifiquei sendo latim em uma caligrafia feito a mão.
Gastei alguns minutos observando aquele museu de livros, cada vez mais chocada com a antiguidade daqueles volumes e suas línguas variadas. Talvez Jay fosse algum colecionador ou algo do tipo, mas teria de ser rico também, para adquirir todas aquelas obras raras. Perguntaria sobre isso depois, se o encontrasse.
Sai da biblioteca com o máximo de silêncio que consegui, e me preparava para subir a escada para o segundo andar quando algo me chamou a atenção.
No corredor, em frente à porta que dava acesso ao porão, o tapete estava desalinhado. Alguém havia passado por aquela porta, mas não voltado por ela, já que se voltasse arrumaria o tapete. Parei com a mão no corrimão, pensativa. O porão era o outro lugar que estava proibida de ir.
- Já invadi a biblioteca mesmo... – Sussurrei para o nada.
Cruzei o corredor e parei diante da porta. Uma série símbolos estranhos estavam entalhados em cada centímetro da madeira, criando um intrincado desenho um tanto sinistro. Engoli meu medo e abri a porta, começando a descer.
Alguns minutos depois parei na escada escura. Estava estranho demais. Já havia descido muitos degraus a mais do que se espera ter para um porão, e o fim da escada não parecia próximo. Agora a curiosidade se sobrepunha ao medo, e segui em frente. Dezenas de degraus. Dúzias de degraus. Centenas de degraus.
Imaginava ter descido uns nove ou dez andares quando a escada enfim acabou. Um corredor longo estava a minha frente, cheio de tochas acesas iluminando o caminho, e no fim dele, uma porta de aço. Com cautela comecei a cruzar o corredor. Estava na metade quando um grito me paralisou.
- Jay... – Corri o resto do caminho e abri a pesada porta de aço sem medo.
Perdi as forças por um momento. Do outro lado da porta, uma enorme sala construída inteiramente de pedras não guardava nada além de um corpo ferido. No lado oposto ao meu, várias portas fechadas. Corri para o corpo preso na parede à direita.
Jay estava ajoelhado sobre o chão. Seus braços estavam esticados e enrolados por correntes apertadas que o machucavam. As correntes presas à parede impediam que seu corpo caísse, o forçando naquela posição. Seu rosto estava abaixado e havia sangue. Só quando cheguei mais perto foi que pude notar as roupas dele. Não mais o jeans escuro e camisa aberta. Agora trajava um tipo de túnica como os antigos gregos, totalmente negra.
- Meu Deus... – Ajoelhei diante dele e tomei seu rosto em minhas mãos.
- Arissa? – Sua voz estava fraca e dolorida. Ele abria os olhos com dificuldade. – Não devia... Estar aqui.
- Seus olhos... – Me surpreendi quando ele me olhou. Seus olhos antes verdes agora tinham o mesmo tom de azul gélido que causavam arrepios.
- Não olhe! – Sua voz se elevou de forma surpreendente.
Mas era tarde. Eu já havia olhado e me prendido naqueles olhos sinistros. Comecei a sentir frio, como se estivesse nua em uma geleira e em minha mente podia ouvir gritos e lamentos. Eu sentia desespero. Estava enlouquecendo.
Jay fechou os olhos e virou o rosto. Cai de lado, encolhida como um feto, chorando em silêncio. Nos olhos dele podia ver um tipo de inferno onde almas condenadas imploravam por paz. Aqueles gritos e lamentos ainda ecoavam em minha mente.
- Eu quero morrer... Não suporto isso... – Sussurrava em desespero.
Ao longe o rangido de uma porta pode ser ouvido, mas não conseguia me mover, perturbada pelo que vi nos olhos de Jay.
- Se olhasse mais alguns minutos, teria sido morta e sua alma vagaria entre aquelas que observou. – A voz grave me causou tremores, mas também me trouxe coragem.
Sequei os olhos e consegui me mover. Os dois homens da noite anterior estavam parados no meio daquela sala, trajando as mesmas túnicas negras que Jay usava. Ali estavam os dois supostos irmãos que o haviam seqüestrado e machucado. Eu sentia raiva deles. Uma raiva muito profundo que acabava com meu medo.
- Quem são vocês? Por que fizeram isso? – Mil perguntas enchiam minha cabeça e nada ali fazia sentido.
- Tenha respeito conosco, sua incetinha. – Disse o de cabelos curtos.
- Por que eu deveria ter respeito por alguém que tem essa sua cara de múmia? – Provoquei.
- Juro que vou comer seus olhos como fazem as gaivotas! – Ele ficava nervoso. Eu não me importava.
- O que? Corvos fazem isso, seu idiota.
- Ela está certa. – Surpreendentemente o homem de cabelos negros me apoiou.
O outro parecia envergonhado e deu as costas à conversa. Parte de mim queria rir, mas evitei isso.
- Amon... Deixe-a ir... – Jay fazia um grande esforço para falar.
- Não irei antes de obter respostas. Tudo isso é estranho de mais.
- Responderei o que perguntar. – Disse o homem com frieza.
Pensei um pouco, tentando organizar as perguntas em minha mente. Corri o olhar em volta e pelos três. Lembrei da noite anterior. Tudo muito confuso.
- Certo. Pra começo de conversa, que tipo de casa tem uma escada tão longa para o porão? – Primeira coisa que apareceu em minha mente.
- Não tem. A escada para o porão daquela casa tem apenas seis degraus. Mas no quarto degrau há um portal que a trás para a escadaria principal e se pode descer até aqui. – Ele estava com os braços cruzados e falava com calma e naturalidade. Como se fosse muito normal o que ele dizia.
- Ah, ótimo. Então isso aqui é o que? Nárnia? Ainda não vi um leão falante. – Apontei para o homem de cabelos curtos. – Se bem que ele tem cara de Rainha Branca.
- Como é? – Ele me encarou. Mostrei a língua.
- Esta é uma dimensão diferente da sua. É nosso lar.
- Vocês chamam essa catacumba de lar? – Olhei em volta e voltei a falar. – E quem são vocês afinal? Ah! Já sei. Você é o Mágico de Oz. Claro.
Tudo aquilo me divertia. Era óbvio que eles eram atores ou viciados naqueles jogos interpretativos. Outras dimensões. Que piada. Se queriam brincar, eu ia entrar no jogo também.
- Você leva tudo isto como uma brincadeira, jovem mortal. Seria mais prudente segurar sua língua. – O de cabelos negros agora estava irritado. – Se quer ouvir a verdade, sente-se, cale a boca, e escute.
Enquanto falava ele apontou o dedo em minha direção, e uma cadeira que eu não sabia de onde viera estava sob mim. Admito que isso me assustou e comecei a repensar as coisas. Talvez não fosse uma brincadeira, mas eu estava ficando louca.
- Nossos verdadeiros nomes foram a muito perdidos, e a cada Era, a cada povo de seu mundo, nossos nomes mudam. Decidimos escolher os que mais nos agradam para nos apresentarmos.
Uma pausa para estudar minha reação. Eu estava simplesmente confusa. Ele continuou.
- Pode me chamar de Amon Dei, o Escondido pela Noite. Sou o primeiro dentre os setenta e dois Deuses da Morte.
- O que? – Agora estava em choque.
- Existem setenta e dois seres imortais, criados no princípio dos tempos, que vagam pelo plano mortal vigiando os humanos. Quando a hora chega, somos nós que levamos suas almas para a Morada. Não há céu ou inferno. Todos que morrem vão para a Morada.
- Morada? – Repeti, sem entender o que poderia ser este lugar.
- O lugar que você viu nos olhos dele. – Amon apontou para Jay. As imagens voltaram para a minha mente e sabia que estava pálida. – Quando alguém olha diretamente para nossos olhos, a vida deixa o corpo e a alma é levada.
- Você também faz isso, Rainha Branca? – Olhei para o homem que ainda não havia se apresentado.
- Pare de me chamar desta forma... – Ele respirou fundo. – Sim. Todos os setenta e dois Deuses tem o mesmo dom. Meu nome é Asar, apropósito. O Juiz dos Mortos. Sou o segundo Deus da Morte.
- Por que prenderam o Jay? – Falei baixo. Não queria acreditar em nada daquilo, mas algo em mim dizia para acreditar. Era demais absorver todas aquelas informações.
- Jay? – Amon parecia confuso com o nome.
- Quem é Jay? – Asar perguntou.
Virei o rosto para olhar para o homem acorrentado e ferido. Assim que o fiz, os dois Deuses riram com vontade e eu não sabia o porque. Asar caminhou até ele e se abaixou.
- Além de abandonar seus deveres ainda se passou por humano? Sério? – Novamente ele ria. – Ah, como eu queria poder matar você, Anpu. Desculpe... É Jay agora, não?
- Este cãozinho... – Amon começou e atraiu minha atenção. – Como lhe dissemos é nosso irmão. Anpu, o Preparador dos Mortos, terceiro Deus da Morte.
- Anpu? – Repeti. – Parece nome de sapo.
Atrás de mim ele riu com dificuldade e me arrependi do comentário.
- Em algumas partes do Egito me chamavam de Anúbis, se preferir. – Ele disse sorrindo.
Levantei com tanta surpresa e rapidez que a cadeira tombou para trás. Por que eu estava acreditando naquela conversa? Fiquei observando Jay... Anpu... Seja quem for.
- Nós o prendemos porque ele deixou de cumprir suas obrigações. Pelo jeito tentava se tornar humano. – Amon o puxou pelos cabelos até que levantasse a cabeça. – Querido irmão... Tudo o que você ama irá queimar.
- O que pretendia Anpu? – Asar falava com frieza. – Daqui alguns meses quando não mudasse nada em sua aparência iria desaparecer da vida dela e passar o resto da eternidade lamentando?
- Não toquem nela. – Ele sussurrou.
- Ou o que? Você não pode fazer mais nada. – Amon o soltou e se afastou.
- Deixe-a e eu retorno. – Os Deuses se calaram. – Continuarei com minhas funções, mas deixe-a ir.
- Não! – Me intrometi. Jay era a melhor coisa que tinha acontecido em minha vida desde a morte de meus pais e os problemas com meu irmão. Era a única coisa boa da minha vida. Eu jamais conseguiria ficar sem ele. Corri até ele e o abracei ainda acorrentado. – Quero ficar com você.
- É impossível. – Ele disse com tristeza. – Algum dia você morrerá e eu seguirei. Foi uma grande idiotice achar que poderia ter você pra mim. Sinto muito por isto, Arissa.
- A menos que... – Asar começou. Um sorriso sádico em seus lábios.
- Não. – Jay cortou.
- A menos que o que? – Perguntei. – Há um jeito de eu ficar com ele? Diga-me Rainha Branca.
- Me chame assim mais uma vez e eu corto sua garganta!
- Há um jeito de você continuar com ele. – Amon refletia.
- Oz... – Notei a expressão de desgosto em Amon, mas ignorei.
- Deuses da Morte podem ter uma alma ligada a eles pela eternidade. – Amon ignorou meu comentário e continuou seu monólogo. – Se Anpu a tiver desta forma, poderão ficar juntos eternamente.
- Então eu o farei. – Fui direta. Não quis saber o que seria. Apenas sentia uma forte vontade de continuar ao lado dele. Eu não tinha mais família, nunca cultivei amizades importantes. Não tinha nada a perder.
- Não! – Jay gritou, cortando meus pensamentos.
- Irmão, reprovo suas atitudes, mas não desejo seu mal. Só tento ajudar. – O Deus de cabelos negros parecia sincero.
- Acho que ele não quer tanto assim ficar ao seu lado, menina. – Asar provocava.
- Fique quieto, Rainha Branca. – Jay devolveu em mesmo nível. Quis rir, mas outra coisa ficou em minha mente.
- Por que recusa a idéia? – Olhei com pesar para o homem acorrentado. Talvez Asar tivesse razão.
- Arissa, não pense como Asar que não desejo sua companhia eterna, mas ao que se referem é torná-la minha escrava. Você não seria mais você. Seria submissa a mim. Tudo o que eu dissesse pareceria certo para você. Não posso aceitar isso.
- Não me importo com isso. – Me abaixei ao lado dele. – Jay, eu só quero estar ao seu lado. Sei que cuidaria bem de mim.
- Ah, esqueci um detalhe. Você estaria morta também. – Amon foi direto.
Congelei sem olhá-lo. Morte. Algo nessa idéia me causava arrepios. As imagens do lugar que vi através dos olhos de Jay invadiram minha mente e eu senti medo. Muito medo.
- Ainda... Ainda quero isso. – Falei.
- Você deseja coisas que não compreende por completo... – Jay suspirou e fechou os olhos.
- Anpu. – Asar chamou e ele abriu os olhos para o irmão. – Sabe o que acontecerá. Se permitir a vida dela, quando a hora dela chegar você não terá a coragem de levá-la. Vai ocasionar o desequilíbrio da vida mortal.
- Asar... – Jay ria. – Você me lembra uma história que li no mundo mortal.
- Hércules? – O segundo Deus fez pose.
- O Médico e o Monstro. – O terceiro riu de novo. – Sua preocupação é digna de um Bobo da Corte.
- As crianças poderiam calar suas bocas? – O primeiro Deus interveio. – A escolha é da mortal. Vamos menina, não temos todo o tempo do mundo.
- Na verdade nós temos, mas isso aqui já encheu o saco. – Asar era sincero.
- Desejo tornar-me uma alma serva do terceiro Deus da Morte. – Falei pro fim.
- Ótimo. Vamos matá-la. – Não sei de onde Asar tirou um tipo de pistola antiga, mas fosse como fosse, a arma não combinava com Deuses.
- Mas... – Cortei e Asar suspirou. – Quero mais um mês, antes disso.
- Para que? – Todos pensaram isto, mas foi Amon quem disse em voz alta.
- Sempre quis ser escritora. Irei escrever a história de minha vida nestes últimos meses e enviarei para alguém que publicará. Este último sonho eu quero realizar.
- Que coisa antiquada. – Asar brincava com a arma.
- Falou o homem vestido como um grego mumificado. – Retruquei. – Que nome dá à esses panos que te amarram?
- Amarrada está você, sua doida!
Amon Dei suspirou como um pai cansado das discussões tolas dos filhos. Caminhou até Jay e as correntes foram soltas. Vi as feridas em seu corpo começarem a se curar diante de meus olhos. Asar pegou sua arma e apontou para o irmão, apertando o gatilho. Esperei um grande barulho e sangue, mas o som foi curto e que voou foi uma nuvem de confetes coloridos.
Minhas condições foram aceitas, apesar de Jay continuar sendo contra. Durante um mês escrevi todos estes acontecimentos e enviei para um velho amigo de meu pai, editor famoso. Não esperei para ver o resultado de meu esforço. Pelas mãos de Jay eu morri, e me tornei sua serva.
O Terceiro Deus da Morte se tornou minha vida por completo. Ao longo de décadas, minha memória ficou para trás e eu já não sabia mais nada do mundo de onde vim ou das pessoas que conheci por lá. Agora só conhecia a frieza de Amon Dei, as brincadeiras infantis de Asar, e um amor arrependido de Anpu.
Antes de minha morte, deixei uma pequena mensagem para o terceiro Deus, e ele ainda a guardava com carinho.

“Eu tive tudo, oportunidades para a eternidade e eu poderia pertencer à noite. Eu posso ver em seus olhos. Tudo em seus olhos. Você me faz querer morrer. Eu poderia morrer por você, meu amor”.

- FIM -