Manuscritos do Silêncio

"O silêncio é capaz de expor um lado da humanidade que nem milhares de palavras seriam capazes de descrever." Sisá Fragoso - Manuscritos do Silêncio

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Anjo da Escuridão!



Desde tempos muito antigos. Desde os primeiros povos tomarem seus pedaços de terra pelo mundo, uma ameaça assombra lendas, sonhos e vidas.
Uma figura espectral de mantos pesados e negros, com longos cabelos lisos esvoaçantes e escuros como a noite. Seus olhos possuem um inumano tom cinza e ao mesmo tempo estranhamente brilhante, como relâmpagos a cortar um céu de tempestade. Um homem tão belo quanto mortal. Uma criatura eterna movida por um ódio que ninguém jamais soube, ou saberá, explicar. Um entre milhares de sua raça. Único em seu terror.

- BOO! – Eu não esbocei qualquer reação quando Lucy pulou detrás da porta da sala de aula naquela manhã. – Ah, fala sério! Nada?
- Você precisa ser mais furtiva se pretende assustar alguém, e não ficar com o topo de sua cabeça visível pelo vidro da porta. – Continuei andando pela sala até encontrar meu lugar. Em mãos um grosso livro que mesmo caminhando eu não parava de ler.
- Tanto faz. Mas e aí, que fantasia irá usar na festa? – Minha melhor amiga tinha toda a energia que um grupo de crianças de 5 anos poderia ter.
- Festa? – Não tirava os olhos do livro.
- Terra para Katie! Em que mundo você está, garota? – Lucy sentou-se na cadeira a minha frente. – A festa de halloween no ginásio esportivo.
- Ah.
Apesar de vivermos no século XXI, morávamos em uma daquelas cidadezinhas de interior com um número mínimo de habitantes, afastada de qualquer grande cidade, onde mesmo o menor dos eventos sociais reunia a cidade toda no salão da prefeitura ou no ginásio de esportes do colégio, os dois maiores prédios do local.
Quando não falei mais nada sobre o assunto que tanto empolgava minha amiga, Lucy se irritou.
- O que diabos você está lendo? – Esbravejou a garota de 17 anos ao tomar o livro de minhas mãos, lendo a capa. – Mitologia ou Realidade? Você acredita mesmo que essas histórias de criança dormir foram verdade algum dia?
- Claro que não! – Rebati, tomando o livro de volta. – Mas tenho que admitir que são bem interessantes.
- Tipo o que? Um lobo que anda e fala para perseguir uma criança com um mantinho vermelho?! – Lucy riu.
- Estamos falando de mitologia, Lucy. Não de conto de fadas. – Virei o livro em uma página aberta para que ela pudesse vê-lo melhor. – Por exemplo, já ouviu falar em Caim?
- Não foi o cara que matou o próprio irmão ao qualquer coisa assim? – Ela nem ao menos olhava para o livro.
- Ou qualquer coisa assim... – Suspirei buscando paciência. Havia momentos em que eu não sabia se a ignorância de Lucy era real ou auto-induzida. – De toda forma...Biblicamente se conhece este Caim que matou Abel, e blábláblá. Mas há relatos mitológicos mais antigos que citam uma espécie de Anjo Negro chamado Caim.
- Anjo Negro?
- Sim. Segundo este livro, ele foi criado pelos Deuses, assim como todo o mundo, mas por motivos que ninguém jamais soube, Caim deixou nascer em si um ódio descomunal pela humanidade, e há eras ele aparece no plano mortal para levar almas para sua coleção particular.
- Ai credo, Katie! Como você acha isso interessante? É horrível. – Era minha vez de ignorá-la.
- Aqui tem uma descrição do que acontece momentos antes de sua chegada. Oh... – Parei. Reli mais duas vezes o último parágrafo. Logo eu ri. – Isso é realmente interessante.
- O que? – Lucy agora parecia interessada.
- Aqui diz que durante a noite de todos os santos, quando as barreiras entre o mundo imortal e o mortal ficam mais fracas, Caim regressa para buscar almas. Sabe como as pessoas chamam a Noite de Todos os Santos? – Um sorriso sinistro tomou minha face.
- Como? – Minha amiga se encolhia.
- Halloween! – Subitamente bati as mãos na mesa e forcei um riso sinistro que fez com que Lucy derrubasse a cadeira quando o susto a pegou de jeito.
Eu ria com vontade do susto que provoquei em Lucy, e ela brandia xingamentos contra mim. Alguns minutos mais tarde o professor entrou, seguido de mais alunos, e mais um dia comum na escola se iniciou.

Já passava da hora do almoço quando todos foram liberados de suas aulas. Minha irmã mais velha estaria trabalhando como sempre. Nossos pais haviam falecido em um acidente muitos anos antes, mas eu não me fazia digna de dó por isto.
Saí pelos portões da única escola da cidade e rumei para meu local favorito.
- KATIE! – Lucy vinha correndo. – Espero você na minha casa as oito da noite para irmos juntas para a festa, certo?
- Como quiser, Lucy. – Eu não queria estar nesta festa, mas sempre fui muito difícil para eu ignorar todo o carinho de minha amiga por mim, assim eu fazia as vontades dela. – Mas por enquanto vou até a colina continuar lendo.
Separei-me de minha amiga ainda nos muros externos do colégio, e continuei meu caminho. A colina marcava os limites da pequena cidade e depois dela haviam apenas longas planices. Era um hábito meu sentar-me no topo da colina para ler ou pensar. Desta forma o dia passava sem que eu tivesse qualquer noção. Desta vez não foi diferente.
O sol tingia o céu de laranja quando me dei conta de que estava forçando demais os olhos para enxergar as linhas do livro. Puxei o celular do bolso e me choquei com a hora tão avançada.
- Droga. Melhor correr. Vou acabar me atrasando para encontrar com a Lucy! – Coloquei o livro sob o braço, a mochila em um dos ombros e me levantei apressada. Ainda não tinha nenhuma fantasia, mas faria como muitas mulheres na história. Colocaria um vestido preto, maquiagem pesada, e diria que estava fantasiada de bruxa. Nunca falha.
Desci a colina correndo e ao chegar no fim perdi o equilíbrio. Para não cair de cara na terra, me escorei em uma árvore no caminho. O impacto fez a árvore vibrar e uma revoada de pássaros se espalhou pelo céu.
Parei observando.
O que eu achava serem alguns pássaros comuns da região, na verdade era um número muito grande de corvos. Alguns voltaram aos galhos da árvore, outros persistiam de voar em círculos como abutres famintos, sempre grasnando e me causando arrepios.
Jamais havia visto uma ave daquela em todos os anos em que moro nesta cidadezinha, agora dúzias estavam ali.
O sol continuava a sumir no horizonte, e o céu passava de laranja para vermelho vivo, contrastando de forma sinistra com a presença daqueles corvos. Quando um vento realmente forte pareceu surgir do nada, as aves se revoltaram e começaram a voar sem sentido, algumas se chocando com as outras.
Dois deles mergulharam em minha direção e eu caí de joelhos para evitar o impacto. Com o movimento súbito, o livro sob meu braço caiu ao chão aberto em uma página qualquer, mas o vento sinistro se encarregou de exibir uma página em especial.
Ainda abaixada, meus olhos correram novamente pelas linhas que já havia lido horas antes. Meu coração disparava cada vez mais.

“Quando o Sol deixar de brilhar e o céu se tingir de sangue, os mensageiros do inferno cantarão em voz ensurdecedora”.

Os corvos grasnaram com afinco e parecia que meus tímpanos iriam estourar. Cobri as orelhas com as mãos e olhei para as aves negras cruzarem sem rumo o céu avermelhado. Baixei os olhos novamente para o livro.

Os ventos sombrios se encarregarão de exterminar as últimas luzes que o Sol não levou”.

Mal eu acabava de ler, um barulho estrondoso me fez virar na direção da cidade. Os fios dos postes de eletricidade não suportaram a força do evento e alguns se romperam, lançando fagulhas e estourando os distribuidores. Em segundos toda a cidade estava imersa na escuridão.

“E então, quando o desespero subjugar a lógica dos mortais, o caos dominará os caminhos dos inocentes”.

Com o apagão, todas as pessoas saíram às ruas, mulheres estavam assustadas, crianças choravam a plenos pulmões e os homens gritavam confusos, tentando fazer suas vozes superarem os ventos fortes.
Abandonei o livro onde estava, e corri de volta para a cidade. Era difícil, o vento me jogava para os lados, e os corvos sobrevoavam meu caminho. Vidros e janelas das casas e lojas eram estilhaçadas pelo vento.
A última parte do texto do livro fez eco em minha mente quando alcancei a cidade.

“Somente quando a noite reinar, os mensageiros se calarão e os ventos sombrios irão cessar sua violência sob o comando de seu mestre. É a hora do pior dos pesadelos”.

O vento parou como se nunca tivesse estado ali. Os corvos pousaram sobre as casas e postes no mais completo silêncio. Os moradores da cidade sussurravam assustados, temerosos que suas vozes trouxessem de volta aquele estranho fenômeno natural. Natural?
Em algum local da cidade, pouco longe de onde eu mesma estava, alguém gritou. Segundos depois mais gritos vieram. Os berros de dor e desespero pareciam se aproximar, vindos do lado sul ao norte da cidade, varrendo tudo no caminho. O nome de Deus era clamado. Piedade era implorada. Os gritos continuaram.
Minha mente cética entrou em colapso e o desespero dominou a minha alma quando entre os vultos que corriam e gritavam, eu vi um vulto alto que simplesmente caminhava em linha reta pela rua principal. O vento o seguia. Os corvos se encolhiam com sua aproximação. Os mortais eram retalhados ao seu toque.
Por instinto, ou talvez somente por medo, eu corri para o lado de onde tinha vindo, em sentido contrário ao algoz que exterminava a vida de uma cidade inteira.
Acabei por tropeçar no livro que havia abandonado ali. A página virou e eu olhava para uma ilustração antiga, feita ainda a carvão, idêntica ao sinistro vulto que varria minha cidade diante de meus olhos.
Eu chorava e tremia violentamente sabendo o que me aguardava. Não conseguia levantar. Minhas pernas não respondiam. Aquele homem cruzou toda a cidade e parou olhando para o caminho de onde viera, como se admirasse sua obra. A cidade agora estava no mais absoluto silêncio.
Um corvo voou baixo e eu gritei por reflexo. Assim que tomei ciência do que este grito tinha feito, eu chorei ainda mais.
O homem se virou lentamente em minha direção e voltou a caminhar. Se eu tivesse permanecido caída e em silencio, ele teria desaparecido sem dar-se conta de minha presença. Mas aquele animal estúpido me fez gritar e agora eu teria o mesmo destino que o resto da cidade.
Quanto mais perto ele chegava, uma série de cortes surgia em meu corpo, como se uma chuva de navalhas invisíveis cruzasse o ar em minha direção. Eu gritei vendo meu próprio sangue escorrer para fora de meu corpo em grande quantidade.
Mãos invisíveis seguraram meu corpo e o torceram em posições fisicamente impossíveis e os ossos sendo quebrados podiam ser ouvidos com facilidade. A dor me consumiu e eu gritei até minha voz não agüentar mais.
Ele estava agora a poucos passos de mim. Com seu manto negro, os cabelos longos, os olhos gélidos. Era ele. O Anjo da Escuridão. Caim era real.
Caim tirou do bolso uma esfera do tamanho de uma bola de bilhar, translúcida que emanava um brilho rubro singelo. Olhei fixamente para aquela aparente bola de cristal vermelho e pude ver almas atormentadas, presas em uma dimensão terrível dentro da pequena esfera. Seus rostos exibiam uma dor sem igual e suas lágrimas eram sangue. Pouco a pouco eu me sentia sugada para aquela esfera e nada me fazia tirar os olhos daquele sofrimento.
Quando meu corpo caiu inerte no solo tingido por meu sangue, Caim levou a bola de cristal rubro novamente para o interior de seu manto negro e o “Globo das Almas” foi guardado.
Caim focou os olhos no livro ao meu lado, agora com grandes manchas vermelhas ainda úmidas. O Anjo Negro abaixou e pegou o livro em mãos. Seus olhos gélidos correram algumas linhas e um sorriso demoníaco brotou em seus lábios.


Quando o Sol deixar de brilhar e o céu se tingir de sangue, os mensageiros do inferno cantarão em voz ensurdecedora. Os ventos sombrios se encarregarão de exterminar as últimas luzes que o Sol não levou e então, quando o desespero subjugar a lógica dos mortais, o caos dominará os caminhos dos inocentes.
Somente quando a noite reinar, os mensageiros se calarão e os ventos sombrios irão cessar sua violência sob o comando de seu mestre. É a hora do pior dos pesadelos.
Se sua alma é mortal, acredite nestas palavras...
Quando o Anjo da Escuridão pisar neste mundo... É o fim da esperança.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Arrependimentos



Argus, capital do Reino à oeste das Terras Médias. Uma cidade de grande porte que embora não movimentasse a economia da região, impunha respeito por sua força militar de alto nível. Quanto a mim? Já não passo de uma velha sacerdotisa do antigo templo da capital que não fez muito mais que observar e aconselhar os que passavam por meu caminho.
Poucos me chamavam de bisbilhoteira, por me envolver em assuntos dos quais não fazia parte, mas era de minha natureza ajudar os que choravam e sofriam. Apenas uma vez decidi ficar de fora do problema, e até o fim de meus dias – que não está muito longe – eu irei me arrepender de não ter feito nada.
Feron Kashthir tinha pouco mais de 20 primaveras na época, mas já ocupava o posto mais alto entre os cavaleiros a serviço do Rei. Tinha o nome de um grande rei do Egito e seu sobrenome vinha de sangue élfico, significando “Destinado à Proteção”. Feron tinha família em outra região, mas vivia sozinho em Argus desde seus 13 anos. Não chegou ao posto por indicações ou mimos, como muitos pareciam subir, mas sim por seus esforços. Sem dúvida suas habilidades eram as melhores e sua espada a mais mortal.
O cavaleiro não possuía nada de extraordinário em sua beleza. Tinha o cabelo escuro, um pouco curto. Seus olhos tinham a cor das avelãs. Estatura média para os homens da época e porte físico igualmente dentro dos padrões. Ainda sim, um número considerável de damas desviava seus olhos para Feron. Damas das mais bonitas e ricas do reino. Imagino que se atraiam mais por sua armadura reluzente e sua patente que por seu espírito de justiça, por seu coração afetuoso, por seus ideais sonhadores.
O jovem talvez pensasse como eu, afinal, mesmo com tão belas jovens ao seu lado, podendo escolher inclusive a Princesa de Argus, o cavaleiro limitava suas carícias para Sirena. A moça perdeu a família vários anos antes e hoje vivia de favor com uma família de comerciantes locais que a hospedavam em troca do trabalho.
Sirena era o mais comum que podia se imaginar. Possuía cabelos escuros pouco longos. Nada comparado aos longos e sedosos cabelos claros das donzelas. Tinha olhos também escuros, nada daquelas cores brilhantes como um lago. Também não possuía riquezas, ou conhecia modos elegantes de se portar. Na verdade, sentia-se realmente uma estranha na vida de Feron. As moças que o cortejavam falavam sobre coisas do interesse do jovem, assuntos que Sirena não sabia tocar em frente, além claro da clara diferença física entre ela e mulheres como a Princesa. Muitas vezes, incontáveis, olhava Feron sendo cortejado e se perguntava Por que eu?.
Orgulhava-se apenas de ser um tipo de “porto seguro” para os medos mais secretos do coração do cavaleiro. Quantas vezes ela já o havia visto rir com as damas e brincar com os colegas para logo se aproximar e mostrar toda a dor e tristeza de sua verdadeira face. Mas nem tudo podia seguir tão bem.
Feron treinava com a guarda do castelo cada vez mais. Regressava tarde, quando Sirena já havia adormecido, e saia cedo, antes da moça acordar. Em suas folgas, cada vez mais raras, freqüentava a taberna com outros cavaleiros. Ele não fazia nada de errado. Não bebia demais, não se envolvia em brigas, não trocava carícias com outras mulheres. Por isto Sirena jamais o vigiava ou seguia, como algumas amigas a diziam para fazer. Não, Sirena confiava em Feron, e assim seria para sempre. Mas o abandono a magoava e a solidão a estava destruindo dia após dia.
No começo ela cruzava com os conhecidos e mostrava um belo sorriso, se divertia, trabalhava com energia e somente quando estava só se entregava à sua dor particular. Mas quanto mais o tempo passava, mais Sirena não tinha forças para sustentar sua máscara. Seus amigos a cumprimentavam e a moça se limitava a um breve aceno de cabeça, e a tristeza agora fazia parte de suas feições. Então tudo ruiu.
- Estou em casa. – Feron abriu a porta enquanto o sol ainda se punha.
- Feron! – Sirena estava feliz pelo regresso antecipado de seu amor e logo o abraçou com força. – Me alegra sua chegada tantas horas antes.
O cavaleiro sorriu levemente e a beijou por alguns breves segundos, antes de soltar-se do abraço da moça e começar a desmontar sua armadura.
- Voltei antes porque preciso me preparar, descansar. – Metade das peças já estava no chão.
- Preparar-se? – A moça parou de cortar alguns legumes e o olhou com receio na voz.
- Sim. O Rei quer mandar um grupo de cavaleiros para Dauper fazer algumas análises. Nenhuma batalha ou algo do tipo, é apenas reconhecimento.
- Dauper?! – Sirena soltou a faca sobre a mesa e sua expressão se contorceu em infelicidade. – Fica a quatro meses de caminhada de Argus. Só para ir e vir levarão quase um ano. Não acredito que o Rei colocou seu melhor cavaleiro em uma missão sem propósito e tão longa.
- Ele não me colocou. – Feron já estava sem a armadura, escondendo as mãos nos bolsos da calça de tecido leve. – Fui eu que me ofereci.
- O que? – Um sussurro.
- Um grupo de novatos é que irá, Sirena. E se algo acontecer a eles no caminho? Sou o comandante das tropas. Seria horrível para mim se isso acontecesse.
- E se algo acontecer a mim em sua ausência? Feron, como pode decidir isto sozinho? Ficará um ano a muitas léguas daqui e nem ao menos se preocupou em perguntar o que eu achava disto. – Ela agora gritava. A dor tomando conta. – Como pode ser tão cruel assim, Feron?
- Não me peça para escolher entre meu dever e minha vida pessoal. – O cavaleiro mantinha a voz baixa, mas era claro a raiva em suas palavras. – Nada acontecerá com você aqui. Está segura. Se me pedir para ficar só estará limitando minha vida.
- Não me dê as costas! – A moça gritou quando Feron deu meia volta e se preparava para ir ao quarto.
Ele parou, ainda de costas para ela, se limitando apenas a olhá-la por sobre o ombro.
- Não me sufoque, Sirena. – Feron seguiu pelo corredor e o único som ouvido foi a porta sendo violentamente batida.
A moça permaneceu em pé por mais um minuto, antes de desabar sobre a cadeira escondendo o rosto entre as mãos e tentando abafar os soluços de seu choro. Por toda a noite Sirena não dormiu e quando o amanhecer chegou, cruzou os olhos com o cavaleiro que saia do quarto com suas coisas em mãos.
- Te peço mais uma vez que não vá. – Mantinha a voz baixa e rouca pelo choro. Feron ignorou. Pegou mais algumas coisas, vestiu a armadura e rumou para porta. - Não vai nem ao menos se despedir?
- Volto em breve. – Foi tudo o que o cavaleiro disse antes de seguir andando para o castelo, de onde todos partiriam em poucas horas.
Sirena ficou para trás. Por vários dias não se via nada além de lágrimas nos olhos da moça. Mal saia de casa. Levou muitos dias para que ela voltasse à sua rotina de trabalho e tarefas normais.
Feron fez uma viagem tranqüila com os novos cavaleiros. A permanência em Dauper foi de poucas semanas e logo se colocaram a caminho de volta. Exatos onze meses após sua partida, o cavaleiro cruza os limites de Argus com o resto de seus homens.
Sua primeira parada foi no castelo, relatando sua missão. Horas depois chegou a vila e entrou em casa. Tudo estava quieto e escuro. Pelo horário, Sirena estaria trabalhando na loja da família que cuidava dela, mas Feron não se deu conta da grossa camada de poeira que cobria a casa.
Deixou suas coisas em um canto, e saiu, sem acender nenhuma vela. Cruzou com muitos que lhe davam as boas vindas de uma forma menos animada do que ele esperava, mas não se importou muito com isso. Levou cerca de vinte minutos para entrar na pequena loja de ervas medicinais.
- Olá. – Disse de uma forma geral.
- Feron! – Respondia o dono, surpreso com sua chegada. – Enfim voltou, rapaz. Ótimo vê-lo.
- Obrigado. Desculpe minha pressa, mas queria ver Sirena. – Olhou em volta, procurando pela moça. Só então notou que a esposa do dono havia parado de varrer a loja para ficar olhando o chão vazio. Que os filhos deles cruzaram olhares cheios de mistério. – O que houve?
- Ninguém lhe avisou, então. – A voz sussurrada do dono da loja trouxe uma errônea certeza à mente de Feron.
- Ela foi embora, não foi? Depois que eu a deixei sozinha aqui ela foi procurar felicidade em outro lugar, com algum homem melhor que eu. Não é isso? – Só parou de falar quando a voz da esposa do dono chegou cheia de dor.
- Feron... – Ela hesitava. – Sirena faleceu há três meses.
- Que disse? – Por um momento o choque dominou sua face, mas logo um estranho sorriso surgiu. – Não faça este tipo de brincadeiras, Senhora. Eu poderia ter acreditado.
- Há três meses... – O dono puxou novamente a atenção do cavaleiro. – Um grupo de ladrões do deserto invadiu a cidade durante a noite. Roubaram muitas casas e lojas. Eles disseram que as mulheres que se entregassem à eles como escravas seriam poupadas. Sirena resistiu...
- E os cavaleiros? Onde estava a guarda real quando isso aconteceu?
- Eles demoraram a perceber que algo de errado estava acontecendo. Quando souberam correram para cá. Os ladrões foram mortos por eles, mas muitas pessoas da cidade já estavam mortas. – Ele tirou o chapéu e o apertou contra o peito. – Sinto muito, Feron.
- Onde ela está? – A voz do cavaleiro parecia controlada, e ele reagia com frieza à notícia.
- Na colina do lado norte. – Respondeu o dono da pequena loja.
Feron deu meia volta e saiu da loja. Seguiu o caminho para os limites da cidade com a cabeça baixa, sem responder aos cumprimentos de ninguém. Passou pela última casa da cidade e iniciou uma breve sumida de grama. No alto da pequena colina, cercada por flores, estava uma lápide de pedra onde se lia: “Sirena Carmiel – Eterna Amiga”.
Foi neste momento, quando eu estava indo visitar o túmulo da moça, que cruzei com Feron, em pé diante do túmulo, sem qualquer reação.
- Enfim regressou, cavaleiro. – Abaixei-me para colocar algumas flores sobre a pedra, e rezei pela alma de Sirena.
- Por que ela está na colina? Por que não foi levada ao cemitério? – Feron estava realmente muito calmo e eu comecei a me perguntar se ele a havia esquecido. Minha resposta à pergunta dele trouxe uma solução para minhas dúvidas.
- Porque era neste exato local que Sirena vinha todas as tardes sentar-se por horas olhando para as trilhas esperando por sua volta. – Falei com a voz em tom normal. Minhas últimas palavras foram cheias de uma dor verdadeira. – Ela ainda está esperando.
Feron então abandonou sua máscara de cavaleiro perfeito quando seus joelhos arquearam até o chão e uma grande quantidade de lágrimas brotou de seus olhos. Ele começou a gritar o que eu achava ser para mim, porém logo vi que não.
- É verdade então? Você se foi? – Suas mãos agarravam punhados de terra e grama, enquanto ele olhava para o chão, quase como se pudesse vê-la sob a terra. – Eu nunca mais vou poder te ver?
Senti pena de Feron. Sua reação era totalmente diferente do que eu esperava. Era...Humana. Logo eu estava chorando ao lado do cavaleiro. Não sabia se o que eu faria depois traria alivio ou mais dor.
- Alguns dias antes do ataque, ela estava desesperada por seu regresso. Menti para ela e disse que o Rei estava enviando um mensageiro até vocês, que então se ela me desse uma carta, eu poderia fazer com que chegasse até suas mãos. – Tirei o papel amassado de meu vestido e o estiquei para o homem destruído. – É sua por direito.
Feron pegou a carta e a desdobrou com rapidez, lendo cada palavra. Vi seus olhos ficarem mais e mais úmidos, até novamente um choro infantil dominar o cavaleiro. Era a primeira vez que eu via Feron chorar, e talvez até fosse a primeira vez que ele chorava desde seus tempos de bebê.
Não sei dizer por quanto tempo mais durou seu choro, pois decidi deixar o cavaleiro com seus próprios pensamentos, mas várias horas depois ele continuava sentado ali, olhando para o túmulo. Já ficava tarde quando subi a colina para encontrá-lo adormecido sobre o solo, com a mão esticada tocando a lápide. Ao lado de sua mão estava uma pequena navalha e raspas de pedra.
Cobri Feron e o deixei adormecido naquele lugar. No dia seguinte, e em todos os dias que se seguiram, o cavaleiro subia a colina bem cedo, e narrava para o túmulo como havia sido seu dia anterior. Cerca de duas horas depois ele saia de lá e gastava o resto de seu tempo com os treinos. Jamais qualquer outra pessoa tornou a ver um sorriso na face de Feron. Ele apenas lutava e lutava sem parar.
Lutava uma batalha que nunca venceria, pois estava lutando contra o remorso de ter deixado para trás a pessoa que mais amava, a pessoa que mais o amou, sem dizer um último adeus, sem um último beijo.
Feron Kashthir precisou perder tudo que mais prezava nesta vida para compreender o que era sua maior prioridade. Precisou passar a ter o arrependimento como único companheiro para perceber que mesmo que se fique um ano ou um dia longe da pessoa, deve-se sempre tratar os últimos momentos juntos com extrema ternura, carinho e atenção, pois podem realmente serem os últimos momentos.
O cavaleiro faleceu trinta e dois anos depois, de uma doença grave. Seu corpo foi enterrado ao lado de Sirena, e em sua lápide vinha escrito: “Feron Kashthir – Nobre Cavaleiro”.
Uma noite, sentei-me ao lado dos túmulos e com uma faca entalhei a lápide do cavaleiro, da mesma forma que ele havia feito com a lápide de Sirena tantos anos antes. Após minhas alterações, se lia “Feron Kashthir – Nobre Cavaleiro e Protetor”. Já na lápide de Sirena, entalhado pelas mãos de Feron, também havia um complemento...
“Sirena Carmiel – Eterna Amiga e Grande Amor”.


“Meu querido Feron,
Não sei quando você terá a oportunidade de ler esta carta, mas eu queria ter a chance de me despedir. Quero lhe dizer como me sinto, e for por isso que quis escrever essa carta para você. Penso nos bons tempos que passamos juntos. Sempre que eu chorava, você me apoiava e era gentil comigo. Eu sempre estava triste porque sentia falta da minha família e você sempre me lembrava que eles estariam lá, em espírito, zelando por mim como anjos dedicados. Meu querido, seu amor, sua orientação e seu apoio me ajudaram a me transformar nesta jovem que eu sou hoje. Feron, não teria conseguido sem você. E agora quero que você me prometa que vai verter lágrimas pelas pessoas que estão feridas. Dê apoio emocional para os que estão tristes e ajude os mais fracos, porque ainda acredito que você fará nossos sonhos se tornarem realidade. Você é a luz da esperança, querido Feron. Quando as coisas ficarem difíceis, não esqueça que vou estar zelando por você, incentivando você, querendo que você vença. Lembre-se de tudo o que você já fez. Sinta orgulho em saber que você já ajudou as pessoas. Estou muito orgulhosa de você. Obrigada.
Está na hora de me despedir meu querido. Não podia ter tido um amor melhor.
Eu te amo. Sirena”.

sábado, 2 de julho de 2011

Possuída



Estava exausta, mas continuava empolgada. Eu me sentia assim todas as vezes que saia do palco. As luzes já haviam sido apagadas, mas os fãs continuavam a gritar para que houvesse mais.
Sou a vocalista de uma banda que mistura punk e pop, além de ser a única garota no grupo de cinco. Começamos nossa carreira profissional há apenas 6 anos, mas já fazemos turnês mundiais e vendemos milhares de discos. O tipo de vida que muitos sonham em ter.
- Outro show incrível. Uhul! – Lukas, o baterista da banda era o último a descer a escada que ligava os bastidores ao palco.
Uma série de funcionários corria de um lado para outro, falando em seus pequenos rádios, mas nós cinco continuávamos parados perto da escada, ouvindo os fã que ainda gritavam.
- Se eu pegar outro público animado assim acabo perdendo a voz. – Bebi um bom gole de água da garrafa em minhas mãos, recuperando o fôlego.
- Verdade? Deixa eu cuidar da sua voz então... – O guitarrista principal, e não por acaso meu namorado, me colocou contra a parede para me dar um belo beijo.
Ri durante o contato enquanto ouvi os outros simularem o som de alguém vomitando. Logo eles também riam.
- Preciso de um banho. – Soltei-me do abraço e comecei a andar para os camarins.
- Boa idéia, Avery. Posso te ajudar com o sabonete. – O risinho e a mão boba de Lukas chegaram perto de mim, mas não me importei. Há anos que este tipo de provocação era para outra pessoa e não para mim.
- Nossa, Zack, vai deixar? – O baixista, Evan, instigava.
- Quebra ele! – Era a vez do segundo guitarrista se manifestar. Para Joshua tudo se resolvia no soco.
Zack riu e começou a andar atrás de nós, sendo seguido pelo resto da banda. Mal havíamos nos afastado da escada quando uma toalha molhada de suor atingiu a nuca de Lukas.
- Se não tirar a mão da cintura dela, te faço engolir suas baquetas. – O guitarrista decidia entrar na brincadeira e fazia voz de bravo.
Dessa forma animada seguimos até os camarins. Os quatro meninos dividiam o mesmo enquanto eu tinha o meu próprio, não por capricho, mas por razões moralmente óbvias. Não éramos mais crianças. Todos tínhamos idades entre 20 e 23 anos. Camarins separados eram o mínimo que nossos pais esperavam dos produtores.
Agora longe do palco, apenas nossas vozes eram ouvidas no corredor, seguidas dos sons das pequenas correntes. Como eu disse antes, formamos uma banda de punk e pop. Nosso visual faz jus ao estilo.
- Grande show, pessoal. – Simone, nossa empresária dava os parabéns ao cruzar conosco no corredor. – Ah, Avery. Faz alguns minutos que entregaram um lindo buquê de flores para você. Deixei no seu camarim.
- Obrigada. – Sorri apoiando a mão no trinco da porta. Os meninos seguiram pelo corredor até a porta seguinte e Simone atendia ao celular ao mesmo tempo em que andava apressada.
Entrei no camarim e respirei fundo, feliz por mais um show ter terminado tão bem. Olhei em volta para a penteadeira repleta com a maquiagem, o sofá, os figurinos, alguns presentes e mimos dos fãs, até que notei em cima da mesa o tal buquê de flores.
Aproximei-me um tanto confusa e o peguei nas mãos. Simone havia dito que era um lindo buquê, e que havia sido entregue há poucos minutos, mas o que havia em minhas mãos era uma dúzia de rosas mortas. Havia um cartão no meio das pétalas. Abri o pequeno retângulo e apenas uma palavra estava escrita.
“MENTIROSA”.
Amassei o cartão e deixei as flores sobre a mesa. Só podia ser alguma brincadeira de mau gosto.
Puxei uma tolha de cima do sofá e rumei para o banheiro. No caminho desamarrei e abandonei as botas de cano alto, tirei a meia-calça rendada, o cinto de correntes, pulseiras e anéis. Já no banheiro tirei a saia, a blusa e as peças íntimas.
Liguei o chuveiro e comecei a prender meu cabelo. O que eu mais mudava era meu cabelo. Cores e cortes, mas sempre comprido. Agora ele estava na altura de minha cintura, liso, preto com luzes em um vermelho forte.
Enfiei-me de baixo da água quente e senti todo meu corpo relaxar. Fechei os olhos e deixei a água cair em meu rosto, enquanto cantarolava uma de minhas músicas. Parei de cantar quando ouvi a voz de alguém no banheiro. Olhei pelo box de vidro e não havia ninguém.
- Imaginação... – Sussurrei. Provável que meus ouvidos estivessem afetados pelo som alto do palco. Ignorei isso e voltei para o banho.
Demorei cerca de vinte minutos até sair enrolada em uma toalha. Parei diante do espelho embaçado pelo vapor e levei um susto, me virando rápida. Não havia ninguém atrás de mim, mas eu podia jurar ter visto um vulto pelo espelho. Meu coração estava acelerado e me virei aos poucos para olhar novamente o espelho.
No vapor do espelho estava escrito “Mentirosa”. Eu gritei. Como aquilo havia ido parar ali? Há cinco segundos eu havia olhado para o espelho, e não havia nada escrito. Por entre as letras, via o reflexo de meu próprio rosto. Algo ali me perturbou. Meus olhos estavam verdes e sempre foram de um tom de castanho escuro. Eu não usava lentes coloridas. Gritei de novo e caí sentada no banheiro, abraçando meus próprios joelhos. Quase imediatamente a porta foi aberta com força.
- Avery! – Zack foi o primeiro a entrar, ignorando qualquer coisa e indo me abraçar no chão.
Lukas, Joshua e Evan estavam logo atrás, olhando em volta, no camarim e no banheiro, assustados, preocupados.
- O que foi? Tinha alguém aqui? Por que você gritou? – Zack me enchia de perguntas e eu ainda não conseguia falar direito. Tudo aquilo só podia ser coisa da minha cabeça e se eu falasse tudo para eles só achariam que estava louca.
Forcei um sorriso e tirei forças não sei de onde para inventar a desculpa de que achava ter visto uma aranha enorme. Eles riram e me provocaram chamando de medrosa. Logo foram saindo, mas Zack decidiu ficar por perto. Secretamente agradeci por isso.
Ele já havia tomado banho e se vestido. Não que suas roupas habituais fossem muito diferentes dos figurinos do palco, mas ele dizia que se sentia melhor com suas roupas. Usava um All Star rabiscado por ele mesmo, jeans rasgado, camiseta preta, além das correntes em pulsos e pescoço. Seu cabelo loiro estava molhado e desalinhado. Agora Zack se ocupava em recolocar os três brincos que usava na orelha esquerda.
Levou cerca de duas horas para que todos estivessem prontos para voltar para o hotel. Uma van com vidros filmados nos levou em segurança e subimos até nosso andar. Lukas e Evan dividiam um quarto. Zack e Joshua outro. Eu ocupava o terceiro.
- Posso entrar? – O guitarrista já estava dentro quando perguntou, mas ainda sim eu respondi que podia. – Tudo certo com você?
- Hum? – Logo me lembrei da mentira sobre a aranha. – Ah! Claro. Só me assustei com a aranha.
- Aquilo não foi um susto, Avy. Você gritou como se estivesse sendo esquartejada. – Ele se aproximou e me abraçou com força. – Quer que eu fique aqui essa noite?
Retribui o abraço e respirei fundo, sentindo o cheiro de seu perfume, um aroma que eu realmente amava. Ensaiei um sorriso que mostrei para ele.
- Estou bem, Zack. Sério.
- Certo. Tente dormir então. Amanhã cedo temos a sessão de fotos.
Ele desistiu de tentar discutir comigo e se despediu, reforçando diversas vezes que estava logo ali do outro lado da parede. Quando meu namorado saiu, me larguei na cama, olhando para o teto. Tudo isso estava sendo muito louco.
- Deixe de besteiras, Avery. Você está cansada. Só isso. – Falava comigo mesma, me levantando e indo até uma de minhas malas.
Remexi uma pequena quantidade de livros e revistas até encontrar algo para me distrair. Coloquei todo o resto em uma pilha sobre a mesa de centro e voltei para cama. Li alguns parágrafos de um artigo sobre moda e logo adormeci, com a mesma roupa que estava.
Um barulho em meu quarto me fez acordar em um pulo. Minha mão voou para o interruptor e a luz se acendeu. Não havia ninguém no quarto, nem mais nenhum barulho. Sentei na cama e esfreguei a mão no rosto. Quando voltei a olhar em volta notei que a pilha de livros havia caído de cima da mesa e se espalhado pelo chão. Então havia sido este o barulho.
- Mas... Como isso caiu? – Levantei e fui para perto. Comecei a recolher os livros quando algo me chamou atenção. Um livro caiu aberto em um capítulo cujo título era “Doces Mentiras”. Aquilo me perturbou. Fechei o livro e o coloquei na mesa com os outros.
Um pequeno álbum de fotos também estava na pilha e acabou no chão. Quando o ergui, uma foto escorregou para o chão. Nela estávamos Zack, uma outra pessoa e eu, há quase dez anos. Meu rosto na foto estava totalmente rabiscado. A porta do quarto se mexeu como se alguém a tivesse forçando do lado de fora. Levantei com cautela e cheguei mais perto, ainda com a foto nas mãos. Seria um ladrão? No hotel?
- Quem é? – Falei do lado de dentro. Não houve resposta. A porta continuou sendo forçada. – Responda!
A porta parou, mas não ouvi passos se afastando, nem a voz de ninguém. Com uma coragem não natural de minha parte, abri a porta com vontade. Ninguém. Dei um passo para fora e olhei para os dois lados. Apenas o corredor do hotel. Voltei para dentro do quarto e fechei a porta, apoiando a testa na mesma.
- Mentirosa. – Alguém sussurrou atrás de mim. Virei-me novamente para encontrar absolutamente nada.
Lembrei da foto em minhas mãos, que misteriosamente estava rabisca bem em cima do meu rosto. Voltei a observá-la. A terceira pessoa na foto era uma amiga de infância minha e do Zack. Nossa banda começou como um trio. Trayci e eu nutríamos uma paixão secreta pelo guitarrista, e por nossa amizade decidimos não forçar nada com ele.
Costumávamos ser os melhores amigos do mundo. Tray escrevia as músicas, Zack colocava a melodia, e eu fazia as coreografias que todos faríamos enquanto cantávamos. Mas...
Há quase oito anos, Tray não apareceu na escola, nem no ensaio, e quando fomos à sua casa a noite, a mãe dela disse que ela saiu no horário de sempre. A policia a encontrou no dia seguinte, em nossa velha casa na árvore. Tray havia cortado os próprios pulsos.
Ao lado dela estavam três cartas. Uma para a mãe, pedindo desculpas por isto e dizendo o quanto a amava. A segunda era para Zack, confessando todo o seu amor. A última para mim, tendo apenas duas palavras no papel: Traidora. Mentirosa.
Cerca de um ano depois conhecemos os meninos que agora compunham o resto da banda, e há três anos que Zack e eu assumimos um relacionamento.
- Traidora. Mentirosa. – Um sussurro. Eu parei, sem olhar para nenhum lado. A voz veio mais alta. – Traidora. Mentirosa.
Com relutância fui erguendo os olhos. No centro do quarto estava uma garota em pé. Sua calça jeans estava suja e a camiseta branca tinha grandes manchas vermelhas. O cabelo ruivo estava liso e encobrindo parte do rosto. Os olhos eram fundos e raivosos, mas com uma fabulosa cor verde.
- Traidora. Mentirosa. – Repetiu a garota morta em meu quarto de hotel.
- Tr... Tray? – A foto deslizou de meus dedos para o chão. O cabelo ruivo, os profundos olhos verdes, sem dúvida era a mesma garota.
- Traidora. Mentirosa. – Era tudo o que Tray dizia. Os olhos verdes estavam cravados em mim. Seus pulsos escorriam muito sangue que acabava sendo absorvido por suas roupas.
- Por... Por que está dizendo isto? – Meu corpo estava colado com a porta. – O que eu fiz?
Ela não falou mais nada. Ficava agora olhando para o chão. Não podia mais ver seus olhos. Logo ela começou a falar baixo, mais para ela mesma do que para mim.
- Roubou... Roubou tudo que era meu. Avery roubou tudo de mim. Tudo o que era meu, Avery pegou para ela. Traidora. Mentirosa. Avery foi a culpada. – Tray ergueu os pulsos para olhar os cortes.
- Do que está falando? – Estiquei minha mão até a maçaneta da porta. Morta ou não, ela estava longe. Eu poderia correr.
Tray sumiu no ar. Continuei imóvel, olhando para onde ela deveria estar. Subitamente a ruiva apareceu extremamente próxima a mim. Seus olhos verdes cheios de ódio estavam olhando fixo para os meus, arregalados e intimidadores.
- Você roubou tudo de mim! – Ela gritava, há centímetros de mim. – Minhas músicas, você canta como suas. Minhas roupas, você usa e diz que é seu estilo. Sua mentirosa! Você quebrou nossa promessa, deu em cima do Zack e o pegou também. Traidora! Você tirou tudo de mim! Você me matou!
- Não... Não... Eu não fiz nada... – Meu corpo parecia pesar demais, e fui me encolhendo até estar sentada no chão. – As músicas...Você fez pra nós... Seu estilo eu só admiro... E o Zack... Meu Deus... Você tinha se matado...
- VOCÊ ME MATOU! – A ruiva morta berrou próxima ao meu ouvido. – Foi por sua causa que eu fiz aquilo. A culpa é sua, Avy. Sua vida era pra ser a minha. Minha fama. Meu sucesso.
Eu comecei a chorar, fechando os olhos. O medo me consumia com facilidade. Não conseguia encarar aqueles olhos verdes, os mesmos olhos que vi no espelho horas antes. Por que ninguém vinha me ajudar? Estava assustada.
Tremi violentamente quando dedos frios deslizaram pelo meu cabelo em um tipo de carícia macabra.
- Tudo bem, Avy. Vai ficar tudo bem. Seus fãs ainda vão te ver no palco, ainda ouvirão suas músicas. O Zack... – Ela fez uma pausa, repetindo a carícia várias vezes. Sua voz agora era terna. – Ele ainda vai namorar essa garota linda que você é. Tudo ficará bem, Avy.
De alguma forma a voz foi ficando mais afastada e meu coração foi desacelerando. Meu choro parou e senti segurança para abrir os olhos. Eu estava sentada sozinha em um lugar totalmente escuro.

Zack bateu na porta do quarto de hotel bem cedo. A sessão de fotos seria logo e para variar a vocalista, única mulher, era a última a ficar pronta.
- Podemos ir andando, Punk Princess? – O apelido que a mídia havia dado era de certa forma muito fofo.
- Claro. Já estou pronta. Zack...
- Diga. – Ele usava o espelho para dar um retoque em seu cabelo.
- Senti tanto a sua falta...
- Do que está falando, Avy? Eu estava aqui ontem à noite. – Ele riu e se aproximou para um abraço. – Mas você fica linda falando isso. Hey! Está usando lentes coloridas? Ficou legal com os olhos verdes.
- Obrigada, Zack.
Como prometido, o mundo continuou a ouvir as músicas de Avery. Continuou a vê-la no palco, na TV, nas revistas... E o Zack continuou a namorar aquela garota bonita. As lentes coloridas eram moda por isso ninguém estranhou a mudança drásticas nos olhos da cantora, e com o tempo todos os fãs se habituaram aos novos olhos verdes de Avery, e seus velhos olhos castanhos foram esquecidos para sempre.

Retorno a Galagah

Todos estavam felizes naquela noite. Comemoravam com música e dança.  Toda a trupe estava feliz e não negavam isso. Gawyn tocava sua flauta com afinco, Sephiros mantinha um sorriso no rosto, observando a festa, assim como Iallanara fazia. Galatea acompanhava algumas mulheres da trupe no bater de palmas, enquanto as crianças rodopiavam e dançavam.
A festa duraria a noite toda, e começariam a viagem para Galagah naquela manhã. Este era o planejado. Galatea e os outros seguiriam ao lado do Daramascos e companhia.
Sobre uma pequena mesa, alguns alimentos estavam dispostos, entre eles, algumas maças. Todos se distraiam e por conseqüência assustaram-se quando Iallanara se levantou tensa, fitando os galhos altos das árvores.
- Quem está aí? – Gritou rumo ao nada.
Todos se calaram e olharam para a bruxa, confusos.
- Iallanara, o que foi? – Galatea deu alguns passos mais para perto da companheira que nem ao menos mudou o olhar de direção.
- Não seja covarde e se mostre! – Mantinha a voz elevada.
Sephiros trocou um olhar rápido com o amigo elfo. Gawyn olhou em volta, buscando por algo ou alguém, mas não viu nada além da trupe de Dalmut.
- Iallanara! – Galatea chamou a atenção. – Diga-nos o que está acontecendo!
A bruxa vermelha apontou para uma árvore próxima,
- Há alguém ali. Eu o vi. – Olhou para Galatea enquanto falava, antes de voltar-se para a árvore e novamente elevar a voz. – Mostre-se! Ou sofra as conseqüências.
- Coitadinha. Está vendo coisas. – Gawyn sussurrou.
Mas todos se assustaram ao ver os restos de uma maça mordida cair ao solo, vindo do alto da árvore, e um riso baixo ecoou. Galatea empunhou a espada. Gawyn e Sephiros também se colocaram em posições de defesa. Os olhos de todos se fixaram na árvore.
- Não parem o festejo. Eu estava me divertindo. – A voz feminina sussurrada veio do meio das folhas. Um vulto se moveu lentamente até saltar ao chão, a vista de todos.
Uma mulher que não teria mais que um metro e setenta, e um porte físico atlético. Tinha os cabelos longos, lisos e de cor castanha. Os olhos tinham um tom castanho semelhante aos cabelos. Trajava um vestido negro que lhe caia até alguns centímetros abaixo dos joelhos, encontrando o cano de uma bota igualmente negra. Em seu tronco um espartilho de tons rubros a tornava ainda mais magra, e acentuava o decote de seu vestido. Um longo bastão de aço negro repousava preso em uma correia em suas costas, e trazia na mão esquerda um manto negro.
- Uma humana? – Sephiros estava confuso com a mulher.
Diante da mulher aparentemente inofensiva, a maioria relaxou. Todos temiam que fosse algum seguidor de Enelock. Mas o receio voltou ao ouvir o riso sinistro da mulher.
- Ou não. – Ela sussurrou com sua voz sinistra ao mesmo tempo em que fechava lentamente os olhos, e os mantinha fechados por um único segundo, então os abrindo uma outra vez. O tom castanho da íris de seus olhos agora fora substituído por um vermelho cor de sangue.
Iallanara ficara mais pálida que o habitual. Gawyn dera dois passos para trás. Sephiros tentou falar, mas os sons não saíram. Apenas Galatea continuava no mesmo lugar, olhando confusa para seus companheiros temerosos, sem entender o medo que se estampava no rosto de pessoas tão valentes.
- Imagino que a Princesa não saiba o que sou. – Novamente o riso sussurrado e sinistro.
- Não me importa o que seja. Se quiser nos atacar, eu revidarei. – Ajeitou a espada que ficou apontada para a mulher de olhos rubros.
- Galatea, não faça nada. – Sephiros advertiu. – Esta mulher é...
A Guardiã da Vida olhava para Sephiros, esperando que concluísse a frase, mas foi a voz de Iallanara que sentenciou a situação em que estavam metidos.
- ...Um demônio.
Galatea sentiu um frio tomar seu corpo e baixou a espada em choque.
- Eu... – Iallanara pigarreou, tentando manter o tom da voz. – Eu achava que sua raça houvesse se extinguido.
- Muitos acham isso. – A voz vinha sussurrada. – De fato não resta muitos de nós, mas estamos por aí. – Correu o olhar por cada um ali, e por fim parou em Galatea, que mantinha a espada preparada. – Ora, não sejam ridículos. Se eu tivesse a intenção de atacar, vocês já estariam mortos.
- Com isso eu concordo. – Gawyn relaxou o corpo, cruzando os braços e analisando a estranha mulher.
- Se não veio ao ataque, o que quer? – Iallanara ainda desconfiava.
- Eu estava de passagem, e ouvi a musica. Como eu disse, estava me divertindo.
- Se a mulher demônio aprecia nossa comemoração, então ela pode participar dela. – Daramascos declarou em sua voz potente.
- Qual o seu nome? – Galatea guardava a espada sem tirar o olhar da mulher.
- Meu nome é impronunciável para vocês. Porém, fique a vontade em chamar-me de Alice. – O riso sussurrado ecoou novamente.
Gawyn aproximou-se do amigo elfo, lhe perguntando em voz baixa, ou ao menos pensou ser baixa.
- Por que ela fica falando aos sussurros?
Sephiros parecia pensar para responder. A raça dos demônios era algo raro de ser visto hoje em dia. Poucos ainda tinham qualquer conhecimento mais especifico sobre seus hábitos. Era de se esperar que apenas alguém que vivia no tempo dos demônios, poderia responder a tal pergunta.
- Para evitar uma habilidade que nasce com os demônios. Se ela falar mais alto, sua voz chamará os mortos para este local, mesmo que ela não o deseje. – Ethan se mostrava presente entre o grupo de pessoas.
- Sim. Não acho que vocês gostariam deste tipo de convidados em seu festejo. – Alice se moveu em passos lentos, e não deixou de sorrir com sadismo ao notar que todos congelaram seus movimentos, atentos ao que ela fazia. Andou até a pequena mesa de alimentos, e pegou uma maça, a levando à boca e mordendo um pedaço. Estava de costas para a maioria daquelas pessoas, engoliu o pedaço da maça antes de falar. – Se ainda tem dúvidas de minhas intenções, use seus dons para verificar, Princesa de Galagah.
Galatea não escondeu a surpresa.
- Me conhece? – Indagou.
- Na verdade não. Conheço o símbolo de teu deus, e estive a ouvir lhe chamarem de princesa. Apenas associei as coisas. Vejo que acertei. – Se distraia mais com a maça do que com as pessoas. – Mas sinta-se à vontade para usar teu poder.
- Disse que se chama Alice. Sabe usar a magia? – Ethan interferiu na conversa.
- Hum? – Alice se mostrava realmente confusa com a mudança de assunto. – Conheço todos os campos da magia, porém uso apenas as magias relacionadas ao fogo. É uma característica de minha família.
- Então eu estou certo. Cresceu muito, jovem dama. – Ethan mostrou um sincero sorriso.
- Nos conhecemos? – Alice questionou ainda se deliciando com a maça.
- Sim. Quando tinha esta altura. – O Campeão Sagrado levou a mão até a altura da cintura, indicando uma referência de altura.
- Impossível. Deve estar enganado. – Concluiu.
- Por que diz isso? – Sephiros estava curioso com a conversa entre a mulher demônio e o Campeão Sagrado.
- O tempo dos demônios corre em um ritmo diferente do que para os humanos. A idade que eu teria para ter tal altura foi à cerca de... – Pensou, fazendo cálculos mentais. – Quase duas vidas humanas.
O som de um assovio se fez ouvir, e Gawyn falou.
- Então você é bem velha.
Poucos segundos depois, metade de uma maça o atingiu no rosto.
- Voltando ao assunto... É impossível que tenha me conhecido com tal idade. – Remexia a mesa de comidas, se apropriando de um cacho de uvas verdes.
- Talvez eu esteja enganado de fato. A jovem que conheci era uma nobre dentro da raça dos demônios. Eu havia conhecido o pai dela, e conseqüentemente sua esposa, que tinha três filhos. Dois rapazes fortes, e uma jovem. Mas eu soube que meses depois aconteceu uma...
- Cale-se! – Alice falou no tom mais alto que podia sem invocar nada fora do mundo natural.
Ethan parou de falar, sem se ofender com a interrupção da jovem. Aquela era a mesma Alice que conhecera tantos anos antes, e sabia o passado negro e brutal que sua família tinha. Sabia também que seria de fato uma imprudência provocá-la em tal assunto.
- Onde a Jovem e, sem dúvida, delicada Dama está indo? – Gawyn a encarava enquanto passava a mão sobre o circulo vermelho que ficou em seu rosto após ser atingido pela maça.
- E quanto à história de que sua habilidade de segurar coisas não funcionar com elfos...Qual sua desculpa desta vez? Também não funciona com demônios? – Iallanara passava a não pensar mais na presença da mulher demônio, e provocava Gawyn.
- As mulheres de hoje em dia estão cada vez mais insolentes. – Agora o olhar fixo do elfo espadachim recaia sobre a bruxa vermelha.
- Agnara. É para onde vou. – Alice respondeu como se nada de importante tivesse em seus caminhos.
Daramascos falava alto, para que seus homens continuassem com a comemoração. A música recomeçou, e as conversas altas fizeram necessário que os cinco em missão Sagrada se juntassem mais próximos de Alice para ouvir sua voz baixa.
- Não tem qualquer obrigação de nos revelar sua missão, mas estou curioso em saber o que fará em Agnara. – Sephiros sentava-se sobre uma grande pedra, cruzando braços e pernas.
- Recebi informações que alguém que procuro pode estar por aquela região. Pretendo localizar esta pessoa. – Alice acabava o cacho de uvas, e agora parecia entediada.
- Quem está procurando? – Gawyn perguntou.
- Não é de sua conta. – Alice fora simples. – E vocês? Elfos, magos, bruxas, Campeões Sagrados. – Correu os olhos por cada um enquanto falava. – É um grupo muito estranho de se encontrar, ainda mais em companhia de uma princesa que me parece muito bem armada. Estão brincando de guerra?
- Não seja idiota! – Iallanara levara a mão ao punhal, ameaçando sacá-lo, mas se deteve ao notar uma ponta de ferro a quase lhe tocar a garganta.
A expressão de todos era de espanto, pois não haviam visto Alice se mover, mas ela estava agora à frente de Iallanara, com o bastão de ferro negro em mãos, apontando sua ponta para a bruxa vermelha.
- Não seja idiota você. – A mulher demônio logo afastou o bastão de Iallanara, o colocando novamente às costas. – Eu já disse que não vim atacá-los, então não se atrevam a atacar-me.
- Peço desculpas em nome de minha companheira. – Galatea se pronunciava. – E no momento estávamos regressando para Galagah. Estou em missão sagrada, mas prefiro não revelar mais que isto.
- Você é muito sincera, Princesa. Embora sua educação esteja falha. – Encostava-se a uma árvore próxima.
- Que disse? – A Campeã Sagrada estava confusa.
- Vocês perguntaram meu nome, perguntaram o motivo de eu estar aqui, o motivo de eu ir para onde vou, e falaram em meu passado. Mas eu ainda não ouvi o nome de vocês. É uma grande falta de educação vindo de uma princesa.
- Lamento, mas sua presença nos deixou assustados. Sou Galatea Goldshine, Campeã Sagrada de Radrak, filha de Airon Goldshine. E estes são Shepiros e Gawyn Silverheart, dois amigos elfos. Está é Iallanara Nindra. E Ethan Ghoslayer, que parece conhecer-lhe.
Alice, pela quarta vez corria os olhos pelos cinco que estavam dispostos ao seu redor. Fechou os olhos e emitiu um riso curto, que mais se assemelhava à um suspiro. Desencostou-se da árvore e apoiou uma das mãos na própria cintura.
- Muito bem. Todos devidamente apresentados. – Abriu os olhos de íris vermelhas e fitou o céu noturno por entre as árvores. – A noite já vai longa. Agradeço tão agradável conversa, e certamente sou grata pelas frutas, mas devo seguir meu caminho.
- Espere! – Galatea pediu, ao ver a mulher demônio se virar. Visto que Alice parara o andar, falava agora com o Campeão Sagrado. – Ethan, você a conhece. Ela nos fará mal?
- Não creio nisso. – Ethan prontamente respondia. – Se tivesse tal intenção, já o teria feito. A morte é de sua natureza.
- Então peço que fique, Alice. Pode nos acompanhar a maior parte do caminho. Parece-me ser uma pessoa muito poderosa, mas acho perigoso para você vagar por aí durante a madrugada. – Galatea parecia ter uma sincera preocupação com a moça.
- Acho que o maior perigo é ela. – Gawyn falou mais para si do que para os outros.
- Acho que devia calar a boca. – Alice parecia querer cortá-lo ao meio com o olhar gélido. Voltou um olhar indiferente para a Princesa. – Minha viagem tem sido solitária. Aceitarei sua gentileza, até que nossos caminhos sejam separados.
Por mais algumas poucas horas a cantoria e festa continuaram, agora com uma pessoa a mais. Enfim, aos poucos, todos foram caindo no sono, a não ser por dois membros da companhia de Dalmut que serviam de vigilantes para os perigos da noite.
Galatea acordou com o pressentimento de que algo próximo se movia. Estava certa. Sentou-se e ficou olhando enquanto Alice, já em pé, vestia o manto negro que a torna quase invisível na noite.
- Onde vai? – Falou baixo para não despertar mais ninguém.
- Volte a dormir, Princesa.
- Achei que fosse seguir caminho conosco.
- Seu amigo Ethan tem razão. A morte é de minha natureza. Tenho de chegar a Agnara e localizar um de meus irmãos. – Alice olhava para o nada, na direção onde ficava Agnara. Estava de costas para Galatea, que não via nada além do vulto negro.
- Pretende se reunir com sua família? – Galatea tinha um leve sorriso no rosto.
O riso baixo, agora algo conhecido, ecoou por um tempo breve.
- Apenas por ser “família” não significa que sejam pessoas a quem queremos bem. – Alice deixava claras suas intenções macabras nessa busca pelo irmão.
Galatea estava sem palavras, e permaneceu em silêncio.
- Mas eu gostei de você, e de teus amigos. Se os deuses permitirem... – Calou-se por um momento, puxando o capuz do manto negro para cima da cabeça. Virou o rosto para Galatea, e continuou. – Espero ter o prazer de revê-los em algum momento.
- Alice... – Galatea agora estava em choque. Os olhos de Alice haviam retomado a cor castanha, e um sorriso estava em seus lábios. Galatea, por um momento, pareceu poder ler a alma de Alice, e nela encontrou apenas ressentimento, decepção e dor, encobertos por uma impenetrável camada de frieza. Lembrou-se do que Ethan falava sobre o passado da jovem, ao qual Alice interrompeu. Estava decidida, perguntaria a Ethan o que havia ocorrido com Alice para tais sentimentos estarem tão amarrados à moça.
Galatea queria pedir que Alice ficasse, que fosse com eles para Galagah. Mas algo dentro de si dizia que era melhor deixar a mulher demônio seguir seus próprios caminhos.
- Boa sorte nesta tua tal missão sagrada, Princesa de Galagah. – Novamente dava as costas à Campeã Sagrada e iniciava um caminhar silencioso, floresta à dentro.
- Galatea. – A Princesa falou mais alto. – Me chame de Galatea.
Alice levantou o braço, deixando os dedos apontados para o céu escuro, sem parar de andar, nem se voltar para Galatea.
- Que as estrelas a acompanhem, Galatea.
A Campeã Sagrada permaneceu sentada, olhando para o caminho que Alice havia tomado, e já não via mais o vulto da mulher demônio. Olhou para o céu e sorriu, deitando-se e partindo para o sono, certa de que em algum momento de sua jornada, Radrak colocaria Alice novamente em seu caminho.

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Nota da Autora: Este conto é uma homenagem à um grande amigo. Todos os personagens que aparecem neste conto, são de autoria de Leandro Radrak Reis e fazem parte do Legado Goldshine. Apenas Alice pertence a mim e é a protagonista do romance Rubro. Obrigada por ler! ^-^